Concordemos ou não, o ensino a distância veio para ficar. A expansão do alcance, velocidade e processamento de dados devido a avanços em tecnologias de informação e comunicação é uma marca de nosso tempo e impacta todas as esferas de nossas vidas. Na educação não é diferente. O uso de internet, documentos digitais, ebooks, periódicos científicos de acesso livre, bancos de dados on-line, documentários, filmes, entrevistas têm rompido fronteiras na educação e nas indissociáveis esferas do ensino, pesquisa e extensão. Particularmente, sou entusiasta de tudo isso. Além de ter tido breve experiência com docência em curso totalmente a distância, tenho aplicado em disciplinas de cursos presenciais atividades e recursos semipresenciais, conforme possibilidade e limites legais. Fato é que ferramentas de ensino a distância via recursos da internet serão cada vez mais presentes em processos de aprendizado. Mas essa constatação está longe de ser livre de grandes problemáticas. Sustento aqui que são três as principais: como, em que velocidade e para quem essa sistemática de aprendizado será adotada.
Um exemplo cotidiano da invasão do aprendizado a distância por meios digitais é que cada vez mais recorremos a tutoriais do YouTube ou dicas na internet para resolver problemas técnicos no nosso dia a dia, desde como instalar um equipamento até dicas para jogos e atividades com crianças. Esse é um exemplo de que o acesso ao conhecimento tem se expandido pari passu a ampliação do acesso a redes. Entretanto, o aprendizado a distância como atividade formal promovida por instituições de ensino validadas e reconhecidas tem muito pouco a ver com vídeos tutoriais do YouTube. Quando ofertado por instituição de ensino, o aprendizado a distância tem o compromisso formal com o conhecimento científico academicamente reconhecido e supervisionado por um profissional treinado, formado e competente. Não é local para achismos ou fake news. Aqui não ensina quem quer ou acha que pode, mas quem tem competência e formação para isso.
Tal particularidade nos obriga a discutir o como. Alternativas e opções pedagógicas consolidadas, testes e reteste de ferramentas, treinamento técnico de profissionais, suporte técnico e acesso infraestrutural a estudantes e professores. Estes são alguns dos elementos obrigatórios a serem levados em consideração em qualquer projeto institucional ou iniciativa individual de implantação de atividades formais de aprendizado a distância. Tudo isso requer planejamento, preparação, gestão e, como consequência, muito tempo dedicado a formulação, implantação e avaliação dos resultados. Por isso mesmo, o desafio do como está relacionado à segunda problemática, a da velocidade. Processos adotados de forma acelerada, ignorando os elementos obrigatórios do como tendem a produzir sistemas falhos e resultados pouco efetivos. Um dos problemas mais relevantes da efetividade (conceito da gestão pública que reconhece a importância da sustentabilidade e legitimidade dos processos) é a necessidade de se pensar o contexto social em que o projeto se insere, o para quem. No caso do Brasil, país em desenvolvimento com grande parte da população vivendo com renda precária, falar em ensino a distância sem preocupar-se com a inclusão digital é pura abstração estéril. Sobretudo no sistema público de ensino, que envolve a rede de Universidades Públicas, a inclusão de estudantes e servidores de baixa renda e segmentos sociais com direito de reparações públicas tem sido uma prioridade social. Portanto, de nada adianta tratarmos de comprometimento público com o avanço do ensino a distância sem planejar políticas de garantia de acesso, treinamento e apoio técnico de estudantes, professores, técnicos e tutores.
Em suma, a adoção de ferramentas de ensino a distância de forma não planejada, apressada, não comprometida com o treinamento e acesso inclusivo tende ao fracasso. Isto é, infelizmente, o que percebo em algumas das respostas dadas pelo Ministério da Educação (MEC) e algumas instituições de ensino superior à necessidade de suspensão de atividades presenciais nos Campi Universitários, devido à rápida proliferação do novo coronavírus no Brasil. Vou deter-me aqui ao caso da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), onde trabalho como servidor docente (professor adjunto). Na última segunda-feira a UFSM informou que as atividades acadêmicas e administrativas presenciais ficariam suspensas por 30 dias. Não questiono em momento algum tal decisão, que, corretamente, conforme orientações da Organização Mundial da Saúde e do Ministério da Saúde do Brasil, se preocupa com a redução da velocidade de proliferação do vírus, com o intuito de não sobrecarregar os sistemas público e privado de saúde no país. Creio que o problema está no passo a mais dado na própria Portaria 97.935 do dia 16/03/20, que indica “”as atividades acadêmicas e administrativas presenciais DEVERÃO ser substituídas por atividades em ambiente virtual ou domiciliares” (art. 3º, parágrafo único). Ao meu ver, esta política apressada acaba por produzir descompromisso com os três princípios mencionados anteriormente: o como, a velocidade e o para quem.
O problema do como é o que vem imediatamente à mente. De que forma professores de cursos presenciais – que, em sua maioria, nunca tiveram formação técnica e pedagógica de ensino a distância – vão imediatamente adotar uma sistemática adequada de ensino on-line? Amparo de tutoriais realizados adhoc por servidores (fundados na boa vontade e na máxima “deixa que eu te ajudo”) não resolvem o problema. As inseguranças permanecem. Inclusive, pois não há qualquer padronização institucional sobre quais recursos e atividades devem ser adotados e priorizados. Eventualmente, alguns cursos presenciais de graduação já inseriram na atualização de seus Projetos Pedagógicos de Curso referências à regulamentação recente e sistematização da atividade a distância (semipresencial). Este é, felizmente, o caso do curso de Relações Internacionais, em que leciono. Mas, pelos relatos que tenho recebido percebo que essa realidade é restrita a pequena parte de cursos de graduação da Universidade. Em suma, professores não sabem como fazer e estudantes não tem certeza de como deve ser feito e respondido.
Aqui, também, o problema de indefinição do como foi agravado pela priorização da velocidade. Ao invés de regulamentar uma coisa de cada vez (suspensão das aulas presenciais e regulamentação das atividades a distância), a portaria acabou instituindo em sua redação a obrigação das atividades não presenciais e acelerando desordenadamente o processo de implementação da sistemática de ensino a distância, incentivando pressões de servidores e estudantes para mais informações e respostas dessincronizadas de pró-reitorias que se viram obrigadas a regulamentar a questão. Nesse contexto de valorização da pressa, ao invés da prudência (necessária sobretudo no momento de caos social) e do diálogo horizontal entre partes, dispositivos normativos cheios de ambiguidades foram estabelecidos.
Incoerências legais produzem incertezas, queiramos ou não, e não são resolvidas somente com boa vontade, mas com novas mudanças legais. Vejo incoerências no estipulado pelas pró-reitorias em relação a normas superiores internas e externas. Internamente, tanto a Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD) quanto a Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa (PRPGP) registram o caráter opcional da adoção de atividades a distância (Instruções Normativas 002/2020/PROGRAD e 001/2020/PRPGP), enquanto a norma interna superior estabelece obrigatoriedade (Portaria 97.935 do dia 16/03/20). Notas e manifestações públicas da Reitoria indicam que a tal obrigatoriedade não está valendo. Mas sem a reforma da portaria superior ou emissão de nova portaria confirmando o que tem sido dito em meios de comunicação, a legalidade não está valendo efetivamente.
Externamente, tanto PROGRAD quanto a PRPGP contradizem atos e normas federais. A Portaria do MEC de 17 de março (portanto, hierarquicamente superior) estabelece que todas as atividades a distância no período de quarentena sejam adotadas “nos limites estabelecidos pela legislação em vigor” (art. 1º). E quais são os limites vigente? No âmbito da graduação, a norma internalizada pela UFSM e cursos de graduação presenciais com projetos atualizados limitam em 20% as atividades semi-presenciais de cursos presenciais, a ser regulamentado pelos Colegiados de Curso, como é o caso mencionado da graduação em Relações Internacionais (cfme. portarias do MEC de 2016, 2018 e 2019; as últimas não totalmente internalizadas). Portanto, estes são os limites legais, ao contrário do que sustenta a PROGAD em informes públicos. Na pós-graduação o problema é ainda mais grave, pois atualmente não há qualquer previsão legal para adoção de atividades semi-presenciais em cursos stricto sensu presenciais. Não obstante, a PRPGP deixou a critério dos programas de pós-graduação a possibilidade de uso de atividades a distância em cursos de mestrado e doutorado stricto sensu, embora essa regras não estejam normatizadas em qualquer instância legislativa ou executiva federal.
Posso ser chamado de legalista. Na minha atuação como servidor público o sou, por convicção e obrigação. Uma das heranças do estamento burocrático português no Brasil foi o estabelecimento de uma estrutura legal fundada no direito romano germânico que se consolida por leis positivadas. Talvez por isso a administração pública tenha como um de seus princípios mais relevantes a legalidade. A legalidade é um dos princípios basilares da administração pública. Exigir que servidores desconsiderem normas escritas por um suposto bem público, sempre subjetivo, é uma irresponsabilidade. Gestores sim, pelo pelo público, deveriam produzir normas adequadas e legalmente orientada para que servidores possam seguir sem contradizer os princípios da legislação que os rege. Na área da saúde os exemplos de atitudes corretas são diversos. Ao invés de realizar ações desorientadas e sem segurança legal, normas foram alteradas para responder a urgência do momento. Por que não podemos fazer o mesmo na área da Educação? Fato é que incoerências normativas são comuns na gestão pública e podem ser corrigidas. A constatação principal deve ser a causa desse problema generalizado. Ao que parece, o comprometimento da Universidade com a velocidade e imagem social, em detrimento da sustentabilidade de suas decisões, impactou negativamente o processo e produziu insegurança jurídica entre professores e estudantes, sobre o que pode e deve ser feito nesse momento de grandes incertezas.
Por fim, chegamos ao ponto mais importante, o para quem. Aqui tratamos da responsabilidade social da Universidade Pública em garantir um ambiente inclusivo de acesso à educação e condições humanas de trabalho a servidores. As notas recentes emitidas pelo Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFSM e Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES-SN), mostram que talvez este não tenha sido o caso, tanto no âmbito da UFSM, em particular, como no das Universidades Públicas, em geral. Impor (como na regulamentação da UFSM) atividades a distância a estudantes e professores em período de quarentena coletiva e calamidade pública parece ser obra de ficção. De que estamos vivendo em um mundo perfeito, em que todos têm, por recursos próprios, acesso fácil e rápido a infraestrutura necessária para qualquer atividade em meio on-line e digital; de que a rotina de todos permanece a mesma, com a mesma disponibilidade de tempo e estabilidade psicológica; de que não há servidores e estudantes com necessidade de tornarem-se babás de crianças em idade escolar ou o único apoio para garantir o cuidado e abastecimento de pessoas em grupos de risco; entre outras ilusões. Em suma, de que o ceteris paribus existe no mundo real, de que somos homo economicus e não homo sociais imersos no contexto caótico do momento. A Nota Pública de 19/03/2020 da Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas (PROGEP) da UFSM reconhece alguns desses aspectos, em conformidade com a Instrução Normativa 19/2020 do Ministério da Economia. No entanto, a nota ignora a obrigatoriedade normativa interna da atividade a distância e que um sistema de proteção a casos especiais poderia ser adotado também para essa forma de atividade.
Se o ensino a distância veio para ficar e pode auxiliar em momentos de dificuldade como o que estamos vivendo ele não pode se deslocar de princípios básicos, como os expostos aqui. Método, prudência, paciência, diálogo e responsabilidade social são tecnologias humanas mais valiosas e efetivas. Respeitá-las deveria ser o comprometimento maior de qualquer instituição comprometida com a educação pública. Ressalto aqui que não se trata de crítica à gestão atual da UFSM, que apoio em diversas instâncias e que tem atuado em geral de forma exemplar no amparo social para o esclarecimento, contenção e tratamento da pandemia. Mas a questão pontual aqui exposta demonstra fragilidades na organização de suas atividades fins e que deveriam ser resolvidas com reconhecimento de eventuais equívocos e tomada de ações contundentes e oficiais para superá-las. Aguardemos.
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