por Igor Castellano e Gabriela Schneider
Certamente você já deve ter se deparado com termos como “Era do Conhecimento”, “Era da Informação” e “Era das Redes”. Esses conceitos são frequentemente utilizados para compreender muitos aspectos do mundo contemporâneo. No entanto, é essencial desvendar o verdadeiro significado por trás deles. Na realidade, esses conceitos emergiram devido à nossa inserção na Era, no mundo, Digital. Esta era em que vivemos é caracterizada por uma notável descentralização de redes de comunicação, composta por núcleo de potentes processadores computacionais. É por esse motivo que podemos também afirmar que vivemos na Era da Informação, uma época marcada pela disseminação de informações. No entanto, essa profusão de informações não necessariamente resulta na produção e difusão equivalentes de conhecimentos relevantes.
A Economia do Conhecimento na Era Digital
O anseio por uma humanidade em que o conhecimento seja mais acessível e aprofundado é evidente. Não se pode negar que nas últimas décadas houve progressos significativos na democratização do acesso ao conhecimento. A facilidade de acesso a informações por meio da internet; a melhoria e o barateamento em tecnologias de captura, edição, processamento e distribuição; e a crescente participação das pessoas na criação de conteúdo audiovisual têm contribuído para a ampliação do acesso ao, e a produção do, conhecimento. Embora os avanços tecnológicos tenham possibilitado uma maior disseminação do conhecimento, a efetiva democratização e o aprofundamento desse conhecimento permanecem desafios complexos que a sociedade contemporânea enfrenta.
Diante disso, a questão que se coloca é: qual é o tipo de conhecimento que está sendo gerado e ao qual estamos sendo expostos? Esse aspecto está intrinsecamente ligado às informações que estão sendo disseminadas, à solidez das bases nas quais o conhecimento é construído e à responsabilidade em relação à veracidade das informações. Nesse aspecto, o que temos observado é uma proliferação do conhecimento em diversas áreas, mas também uma notável fragmentação e superficialidade em muitos casos. Vivemos em uma época em que a informação flui mais facilmente, mas nem sempre se traduz em um conhecimento aprofundado e cientificamente constituído. A disseminação do conhecimento parece ter sido ampliada, mas nem sempre é acompanhada por sua análise crítica e eticamente comprometida.
Além disso, devemos nos perguntar: quem detém o controle e o lucro sobre o que nos é apresentado? Nem todo conteúdo produzido chega até nós, e essa seleção está diretamente relacionada às redes que construímos e utilizamos, ao tipo de conteúdo que é gerado e promovido, aos algoritmos das redes sociais e até mesmo à linguagem empregada naquilo que produzimos. Se, em uma sociedade capitalista, tudo acaba sendo transformado em mercadoria e, atualmente, vendido em uma economia de marketing digital, é válido refletir se o conhecimento está gradativamente se tornando um produto com valor de mercado. Afinal, há uma dinâmica em que pessoas podem lucrar com a disseminação de conhecimento. Hoje em dia, encontramos um acesso surpreendente a conhecimentos no mundo digital, algo que dificilmente poderíamos ter imaginado no passado. Nem tão antigamente o nosso conhecimento vinha da TV, do rádio, dos jornais que líamos, ou das conversas com pessoas que tinham conhecido coisas diferentes ou as mesmas coisas sob perspectivas diferentes. Porém, agora somos bombardeados com milhares de informações que precisamos digerir. E todos esses pedaços de conhecimento fazem parte de uma economia – uma economia na qual dinheiro muda de mãos. Há aqueles que lucram e aqueles que pagam.
Não obstante, uma última questão central é: quem são os produtores desse conhecimento que nós consumimos? E quando chegamos nesse ponto, naturalmente, precisamos lidar com outras duas questões importantes. Primeiro, quem exatamente são esses indivíduos ou grupos sociais que estão gerando o conhecimento que consumimos diariamente? Refiro-me àqueles que estão nas instituições que a sociedade e o Estado estabeleceram para produzir conhecimento com base técnica, profundidade e rigor – a ciência. Mas onde a ciência se encaixa nesse processo de criação, acesso e propogação de conhecimentos? Ela ainda desempenha um papel significativo na propagação do conhecimento que estamos absorvendo atualmente?
Quem Produz o Conhecimento que Consumimos?
Podemos iniciar percebendo quem realmente está por trás do conhecimento que preenche nossas redes sociais. Dê uma olhada na sua timeline agora e veja o que surge. Não são apenas pessoas compartilhando suas vidas ou narrativas pessoais, o que é completamente compreensível. O que observamos em grande parte é gente transmitindo conhecimento ou tentando oferecer informações sobre uma variedade de tópicos: desde assuntos relacionados ao estilo de vida, beleza e alimentação até questões mais técnicas, como instalar uma TV, fazer furos em paredes, cultivar plantas, alcançar a felicidade, compreender política, investir em ações no mercado financeiro e criptomoedas, analisar filmes e até decifrar elementos políticos. Vemos interpretações vindas de todos os lados.
De fato, felizmente, muitos de nós se colocou na posição de protagonista na compreensão do mundo e não se sente constrangido em propogar as suas ideias (inclusive, as totalmente condenáveis). Contudo, o que frequentemente encontramos não é necessariamente o protagonismo daqueles que realmente estudaram a fundo o assunto e são pagos pela sociedade para produzir conhecimento sob bases criteriosas e transparentes em relação a um assunto ou objeto em específico. Tomemos a mídia como exemplo: aqueles que comentam sobre a política na África ou os conflitos no continente não costumam ser especialistas em assuntos africanos, e quem analisa a política dos Estados Unidos ou a diplomacia americana não é necessariamente um estudioso da história dos Estados Unidos. Às vezes, estamos consumindo conteúdo até mesmo de comediantes, e embora o que eles compartilhem não seja necessariamente incorreto ou falho, frequentemente é mais opinião do que conhecimento factual. É por isso que estamos vivendo na era dos “opinistas”, onde todo mundo tem uma opinião e fornece dicas sobre como enfrentar a vida e resolver problemas públicos ou privados.
Esse tipo de conhecimento se tornou essencial na sociedade, ou seja, é um tipo de conhecimento que atrai atenção e vende, tem potencial de monetização. Não só circula amplamente, mas também gera lucros substanciais. Está mais preocupado com convencer, dar certezas, do que com a construção de insumos para sermos capazes de conhecer melhor por nós mesmos. Muitas vezes, esse conhecimento adentra o território da ciência, abrangendo temas como aquecimento global, política, sociedade, economia, raça, gênero e história.
No entanto, é pertinente que paremos para refletir e investigar quem, de fato, está por trás da produção desse conhecimento que consumimos. Na maioria dos casos, essas figuras não são os principais geradores de conhecimento científico. Elas não ocupam posições como proeminentes pesquisadores ou pesquisadoras. Elas não estão sendo remuneradas pelo Estado ou por instituições educacionais privadas com foco em ensino, formação, ciência e tecnologia para se dedicarem ao estudo, análise crítica de seus conhecimentos e para gerarem conhecimento temporariamente válido por meio da pesquisa, formação ou divulgação científica voltada à sociedade. Se consumimos um tipo de conhecimento que não é necessariamente embasado na ciência, mas que, de alguma forma, consideramos aceitável, surge a pergunta: onde estão aqueles que efetivamente produzem conhecimento científico? O que eles estão fazendo? Por que não temos acesso às suas contribuições?
Bem, aqueles que estão engajados na produção de conhecimento científico frequentemente estão sobrecarregados com atividades que não condizem com a relevância da sua atuação na sociedade. Eles estão sobrecarregados com atividades formais, como avaliar alunos e preparar aulas, muitas vezes associadas a conteúdos tediosos e pesados – ainda é essa a forma predominante de avaliação exigida pelas instituições de ensino ao redor do mundo, especialmente no Brasil. Além disso, eles são sobrecarregados com atividades de gestão, tanto no que diz respeito à gestão de sua própria atividade científica quanto à administração de processos e organizações educacionais. Acrescenta-se ainda a sobrecarga com atividades de extensão universitária, geralmente focada em pequenas comunidades e grupos, o que não é insignificante, mas, infelizmente, o conhecimento por eles gerado não está sendo adequadamente difundido nas proporções do mercado digital.
Além disso, esses indivíduos estão sobrecarregados por atividades de pesquisa conduzidas numa linguagem excessivamente formalista, projetada para a aprovação em renomadas revistas científicas e para alcançar um impacto no âmbito científico. No entanto, tal impacto não é avaliado com base em seu efeito na sociedade, mas sim pelo número de citações por outros trabalhos científicos, igualmente hermético.
Infelizmente, atualmente, a ciência não parece estar empenhada em criar conhecimento acessível e difundi-lo por meio das redes globais interconectadas utilizando uma linguagem compreensível. Além disso, os cientistas que possuem maior presença nas redes sociais frequentemente as utilizam para outros fins que não a divulgação de seus conhecimentos e formação científica. Além de escassos, os esforços para disseminar a ciência pelas instituições tradicionais (Universidades) muitas vezes resultam em conteúdo de divulgação científica de qualidade inferior quando comparados aos produzidos por grandes influenciadores digitais.
O Maior Desafio da Ciência
Portanto, a ciência enfrenta um desafio significativo e existencial. Ele é o desafio da comunicação. Ou seja, como exatamente comunicar, compartilhar e difundir o conhecimento que é produzido. Ao longo da história, a ciência tem sido dependente de um ,meio de comunicação bastante restrito e especializado, conhecido como divulgação científica. Embora esse meio tenha o potencial de transmitir o conhecimento científico, vários problemas estão associados a ele.
Primeiramente, a divulgação científica raramente alcança o mesmo alcance da mídia convencional e, frequentemente, aborda tópicos semelhantes aos da mídia convencional. O acesso a esse tipo de informação é notavelmente limitado devido à formalidade peculiar associada à ciência.
Em segundo lugar, a divulgação científica frequentemente deixa a desejar em relação a várias áreas do conhecimento. Ela tende a privilegiar as ciências exatas e naturais, enquanto negligencia as ciências sociais e humanas como componentes vitais do espectro do conhecimento científico que deveriam ser compartilhados e disseminados.
O terceiro ponto a ser considerado é a alta assimetria e arbitrariedade na divulgação científica. Muitas vezes, ela concentra sua atenção nas disciplinas que estão no cerne do sistema capitalista, deixando de lado conhecimentos provenientes de esferas menos centrais. Ela também tende a omitir conhecimentos gerados por perspectivas diversas, locais ou alternativas, não os referenciando adequadamente.
Além disso, muitas vezes, não faz menção aos cientistas por trás das informações, fazendo com que o público possa pensar que o conhecimento divulgado é de domínio público, quando, na verdade, existe um ou diversos trabalhos científicos por trás.
Por fim, a atuação da Universidade e outras instituições públicas de ciência e tecnologia na divulgação científica, além de sofrer com os problemas anteriores, sofre de recursos, qualidade e abragência limitados.
Apesar de sua relevância, a divulgação científica, da forma como existe atualmente, não é suficiente para preencher a lacuna entre o conhecimento que acessamos e a ciência como um todo.
Caminhos Possíveis para a Universidade: Repensar Tecnologia
Então, como podemos resolver essa questão? Como a Universidade poderia se comprometer em diminuir o gap entre a ciência e os conhecimentos que acessamos a todo o instante na sociedade digital? Uma possível solução envolve uma reformulação da estrutura universitária e da sua abordagem à divulgação do conhecimento. Nesse cenário, a universidade deveria se reposicionar e encorajar seus professores a se tornarem disseminadores de conhecimento.
No entanto, isso deve ser feito de maneira descentralizada e flexível, ao contrário do sistema altamente centralizado e burocratizado atualmente vigente. A universidade deveria incentivar a propagação de conhecimentos e facilitar o acesso à produção de conteúdo, oferecendo apoio financeiro e técnico aos professores para que se dediquem a essas atividades ou criarem grupos de suporte com esse propósito.
Além disso, a universidade necessitaria reformular sua abordagem de comunicação, afastando-se de um estilo rígido e formalista. É crucial repensar sua linguagem e a forma como se conecta com um público mais amplo.
Finalmente, a universidade deve reconhecer de maneira inequívoca que isso é tecnologia. Além de estimular o surgimento de tecnologias tradicionais e sociais relevantes, atualmente o conhecimento que ela produz é em si o maior produto da economia digital. Esses produtos assumem a forma de conteúdo digital e, por conseguinte, possuem um valor econômico. Agências, empresas e plataformas de redes sociais pagam por esse produto, pois organizam e compartilham tais conteúdos. No entanto, a universidade muitas vezes deixa de perceber seu próprio conhecimento como tecnologia, inclusive em sentido tradicional schumpeteriano, um produto que produz mudanças disruptivas na economia.
Hoje em dia, muitas universidades ainda associam a ideia de tecnologia à transferência de conhecimento para empresas, com a finalidade de produzir produtos tangíveis, como peças mecânicas, componentes eletrônicos ou dispositivos. Contudo, o conhecimento gerado pela universidade e transformado em conteúdo digital também é, por si só, um produto valioso. Esse produto gera receita, que, por sua vez, pode ser investida na própria universidade para promover atividades científicas, educacionais, informativas e inclusivas.
No entanto, tal perspectiva necessita de uma visão ampla de ciência e tecnologia. A título de ilustração, seria crucial repensar a infraestrutura fundamental de maneira ágil e descentralizada para a produção de conteúdo digital. Isso engloba a disponibilização de recursos essenciais, como microfones, câmeras e computadores de qualidade, além da aquisição de softwares adequados para gravação, edição, armazenamento em nuvem, compartilhamento colaborativo, transmissão e administração de redes. Por outro lado, engloba também amparo com formação e assessoria para produção e gestão de conteúdos digitais de alto padrão e ágeis.
É por essa razão que a universidade precisa reavaliar sua abordagem. É igualmente a razão pela qual instituições intermediárias que buscam facilitar essa transformação e associação entre as universidades são tão importantes. Elas desempenham um papel crucial ao ajudar as instituições acadêmicas a entenderem o potencial tecnológico do conhecimento que produzem e a aproveitar essa oportunidade para fortalecer sua missão e impacto na sociedade.
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