Muitos profissionais ascendem com a tragédia. Não por oportunismo, mas justamente pela particularidade da sua vocação. Jornalistas que cobrem tragédias, crises e guerras acabam ascendendo em sua profissão. Políticos que enfrentam grandes crises com convicção e serenidade, guerreiros que travam batalhas cruciais para defender projetos políticos e vidas, profetas que se tornam mártires pelo seu sacrifício, voluntários que largam tudo o que fazem para colocar a sua vida em segundo plano e ajudar o próximo. Todos são bons exemplos de como podemos transformar a nossa força e vocação em recursos para a superação individual e amparo coletivo. São heróis reconhecidos e anônimos, cuja imagem e legado significam a força que temos para a superação de nossos traumas.
A capacidade de nos reconstruirmos no desespero sempre encantou a filosofia e, posteriormente, as ciências humanas e sociais. São várias as razões para isso ocorrer, mas uma delas é mais relevante para a moral social. O ato de erguer heróis é sempre uma compensação, uma homenagem para honrar os nossos que se foram ou que perderam tanto. E importa muito quem são os nossos e como serão lembrados.
Como superaremos o nosso trauma?
Vamos começar pelo último ponto: como lembraremos, honraremos e superaremos o nosso trauma? Sejamos francos agora. O desastre civilizacional-ambiental no Rio Grande Sul não pode ser lembrado apenas pela destruição, desamparo, embaraço, e, ainda sim, orgulho pelo espírito voluntarista dos humanos. Nem também pelo surgimento da Gotham City brasileira. A paradoxal Porto Alegre, que agora “de alegre não tem nada”, em total escuridão, ausência do Estado e colapso mental. Tampouco, por pessoas vivendo em seus carros por dias estacionados em viadutos, engarrafamentos de tipo apocalipse zumbi e cidades inteiras completamente varridas do mapa.
Como toda a injustiça produz luta, toda a guerra produz paz e toda a tragédia produz acolhimento, esse desastre também gerará novos heróis. E candidatos existem aos montes. O voluntarismo de todos são sinais claros da capacidade de cooperação da humanidade quando mobilizada. Para o contexto do Brasil, o mais impressionante é que todos os espectros político-ideológicos se mobilizaram para salvar qualquer ser vivo consciente pelo caminho. Mas o mérito de elevar os vitoriosos e honrar os perdidos é estéril se ninguém der relevância ou compreender o seu significado. O verdadeiro herói que pode alongar a existencia dos demais é o Estado que se reconstrói depois do desastre.
Na maioria das vezes percebemos que esta reconstrução é sustentada na criação de culpados, dos ditos bodes expiatórios. É claro, exceto quando eles não existem ou quando estão em nós mesmos, de forma impessoalizada. O Japão é o exemplo mais notório disso. Mesmo bombardeado com incontáveis toneladas de armas termobáricas e depois um par de nucleares, nunca culpou publicamente o seu ocupante. O compreendeu e investiu todos os seus esforços na sua reconstrução, na capacidade de ser um povo que mostra que a reconstrução é possível. E o que é melhor para um vitorioso culpado do que construir a sua própria revolução?
Desde que o Brasil se traumatizou com o que produziu com seu hermano Paraguai, a vitória significou culpa e a constante securitização interna. Não é atoa que durante toda a resultante República, os nossos militares tiveram tantas oportunidades para securitizar seus pseudo inimigos: a monarquia, o vizinho, o povo e os ditos comunistas. Agora é a vez do povo. E a prioridade do povo é sobreviver ao trauma. Para isso nenhuma securitização que não seja a ambiental será bem-vinda. O nosso Plano Marshall doméstico não precisa ser construindo contra o fantasma do comunismo. Ele pode ser fundado na simples superação do trauma da nossa ignorância e arrogância na relação com o meio ambiente.
Quem será honrado e quem se comprometerá?
A sociedade civil organizada tem demonstrado a sua capacidade excepcional de mobilização no desastre do RS. E o que é o Estado se não o seu povo organizado? Mas por que o Estado muitas vezes não é organizado efetivamente em prol de interesses comuns? Por que atores políticos priorizam projetos particulares em detrimento dos interesses do povo? Por que a elite econômica e intelectual os apoiam em prol dos seus interesses, desligados dos do povo? Mas, por algum acaso, o que acontece quando o desastre, assim como a guerra, não diferencia ricos e pobres, intelectuais e analfabetos? E assim chegamos ao primeiro ponto, quem são os nossos que devem ser lembrados e quem se comprometerá?
A escala dos esforços para honrar vítimas e heróis é proporcional aos poderes de quem honra. E quando é a elite econômica e racial que está sendo honrada, seriam as honrarias capazes de mover montanhas? Seriam capazes de mobilizar a elite econômica brasileira, o capital financeiro e os meios de comunicação neoliberais – em outras palavras, a economia do enclave? Se sim, estariam eles dispostos a abrir mão de sua compulsão pela acumulação indiscriminada de capital para iluminar a memória de seus semelhantes? Chegariam a se sensibilizar tanto a ponto de rever seus pre(con)ceitos econômicos sexagenários, que propagam ajustes econômicos estruturais e ortodoxia fiscal-monetária para quem quer que assuma qual quer que seja o governo? Concederiam direito ao Estado investir efetivamente no que deve e onde ninguém mais faria com a mínima continuidade, eficiência e justiça?
É cedo afirmar que o ambientalismo pode salvar o Brasil. Ou, que ele fará com que os agentes cientes e inconscientes da nossa economia de enclave permitam o Estado cumprir o seu papel de servir a todxs. De investir pesadamente o que recolhe de nós em tecnologia, educação, cultura ambiental, ciência, obras de mobilidade, segurança cidadã e políticas públicas para todos. Mas não é apenas uma questão de permitir o dispêndio de recursos pelo Estado ao invés de dar de bandeja os impostos que pagamos aos juros do mercado financeiro e aos desonorados fiscais. É uma necessidade nacional.
Talvez não seja por acaso que muitas religiões que fundaram grandes civilizações tenham construído a sua história de superação a partir de mitos de sobrevivência de seus antepassados a um dilúvio de proporções inconcebíveis. As instituições que se seguiram sempre honraram os que se foram e os que sobreviveram como uma sociedade baseada em novos valores. Hoje no Brasil não precisamos nos ater a mitos, basta entendermos a nossa dor e a transformarmos em construção de algo novo e melhor.
É questão de colocar na prioridade do nosso país um desenvolvimento efetivamente integrado à natureza, e não oposto a ela. Um novo modelo de habitação humana em cidades, capitais e interioranas, no mundo atual da era das mudanças climáticas. Para isso precisamos investir pesado em um novo modelo de desenvolvimento. Um que não se oponha, mas respeite os espaços e as necessidades da natureza, da qual somos parte integrante. Um modelo que honre os afetados pelo desastre que ainda vemos e vivemos.
Deixe um comentário