Hoje foi um dia especial, mas também muito triste. Sabem, indígenas do Brasil estão no topo da lista dos povos originários mais excluídos e subjugados do mundo, por serem minoria, devido justamente à tentativa de seu extermínio e pelo caráter pútrido do colonizador e de seus descendentes. É o caso quase ignorado de muitos países pós-coloniais de regiões apropriadas pelos Europeus entre os séculos XV e XVIII, dentre eles, os americanos.
Por sua parte, são justamente os países de ocupação e colonização no período do imperalismo europeu tardio (sécs. XIX e XX) que hoje sustentam Constituições plurinacionais realmente representativas e minimamente restitutivas da tragédia da colonização. Essas Constituições reconhecem a multiplicidade de línguas autóctones como idioma oficial, responsabiliza o Estado pela sua continuidade e aprendizagem. Aliás, muitas também não admitem privilégios para a cor, a classe, a região , a cultura, a arte, a medicina, a ciência, a origem, a herança, o sobrenome, a estrutura social, a religião, os mitos, o símbolos, a história e a linguagem dos colonizadores.
A razão? Várias. Uma delas é óbvia e demográfica. Os genocídios a céu aberto contra os colonizados foram muito menos encobertos e criticados antes do Iluminismo. Menos óbvio é o fato que as contradições entre colonizadores e colonizados em países que se tornaram independentes a partir do segundo terço do século XX, embora apenas recentemente acomodadas em termos legais, ocorreram em um ambiente em que houve a derrota política relativa das elites descendentes dos colonizadores. Estas tiveram que encarar e ceder poder efetivo a uma massa de nacionalistas autóctones inconformados com o absurdo da colonização e sua continuidade. Para ter uma ideia, alguns desses países são mais jovens do que eu.
Já, nos países americanos, a maioria dessas desigualdades foram ignoradas na época da independência. As elites coloniais e seus descendentes detiveram poder desproporcinal e amparo histórico da ordem global instituída pelas potências européias, em que a conquista de direitos pelos povos subalternos foi sempre muito limitada. Só em 2 de abril de 2024, 200 anos após a sua primeira Constituição nacional vimos o Estado brasileiro se colocar de joelhos pedindo perdão para representantes das vítimas de uma de suas infinitas injustiças cometidas contra povos originários. Isso ocorreu na mesma semana em que a tradicional Academia Brasileira de Letras empossou o primeiro intelectual indígena a ocupar um dos seus assentos, Ailton Krenak, nesta sexta-feira, 5 de abril. Por isso, o dia de hoje foi tão especial.
Mas, a favor do pensamento crítico, precisamos considerar a realidade maior. No Brasil, só a partir do Império a luta por direitos civis de pretos, indígenas e, em menor escala de subjugação, brancos pobres, começou a ver resultados políticos, ainda muito limitados, que se somaram a conquistas direitos econômico-sociais mínimos, durante o fascismo à brasileira, e políticos, na Nova República. Direitos civis efetivos, além de culturais e identitários, nunca viram realmente a luz do dia. Nas Américas o status quo colonial foi apenas recentemente atacado e em casos bem pontuais. Em 2009, por exemplo, a Bolívia aprovou em referendo constitucional a adoção de um Estado plurinacional, o que na África já havia ocorrido em vários países e há décadas.
E no Brasil? Continuamos sendo um país de brancos pós-europeus, que concedem direitos quando muito pressionados e ainda com constantes respostas reacionárias. Assim nos arrastamos na necessária reparação histórica. Krenak representa centenas de línguas e linguagens invisibilizadas, de povos involuntariamente colonizados ou trazidos violentamente ao campo de concentração que se tornou o Brasil colonial e pós-colonial. E isto está muito longe de acabar, que dirá ser reparado. Por isso, hoje foi também um dia muito triste. Como cantou Clara Nunes,
Ninguém ouviu
Um soluçar de dor
No canto do Brasil
Um lamento triste
Sempre ecoou
Desde que o índio guerreiro
Foi pro cativeiro
E de lá cantou
Negro entoou
Um canto de revolta pelos ares
Do Quilombo dos Palmares
Onde se refugiou
Fora a luta dos inconfidentes
Pela quebra das correntes
Nada adiantou
E de guerra em paz
De paz em guerra
Todo o povo dessa terra
Quando pode cantar
Canta de dor
Ô, ô, ô, ô, ô, ô
E ecoa noite e dia
É ensurdecedor
Ai, mas que agonia
O canto do trabalhador
Esse canto que devia
Ser um canto de alegria
Soa apenas como um soluçar de dor
Ô, ô, ô, ô, ô, ô
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