Vivemos em um momento de incremento das interações virtuais e diminuição de contatos com espaços físicos, em que fronteiras institucionais e noções de pertencimento e competências são menos claras. Não é a toa que diuturnamente nos deparamos com situações de desvio de funções e atuação para além de suas atribuições originais de governantes, magistrados, militares, promotores, legisladores, gestores públicos, jornalistas, etc. Tem-se a noção de que ninguém mais respeita os limites de suas funções, em um misto de necessidade constante de exposição e surto onipotente que assume que por alguma razão tudo pode. A internet premia tais comportamentos. Valoriza, como opinião e notícia, a forma, a retórica, a diversão, a lacração, em detrimento da profundidade, confiabilidade e coerência. Cientistas, como eu (sim, me considero um e já digo por que), são eficazes em acusar o deslocamento de funções que instituições e personalidades públicas assumem no momento, mas ignoram o seu próprio comportamento desviado. Afinal de contas, somos cientistas ou opinistas?
Estamos na era das lives, da profusão de informações por todo o canto, da reprodução de jornais virtuais, da criação de postagens chocantes e provocativas dispostas a revolucionar a cabeça de quem lê. São tempos da disseminação da criatividade devido a ampliação das variedades e do acesso a meios em que audiovisual e texto são veiculados e acessados. Põe nisso tudo ainda uma pitada de ansiedade individual devido à reduzida interação social física ente as pessoas, um bocado de tempo livre para quem está em casa sem compromissos estipulados e o circo está montado. Todos viraram opinistas. Todos têm algo relevante a dizer. Todos compartilham, com comentários pretensamente virais, a notícia mais fresquinha. Todos responderam de forma inédita como superar as agruras do nosso tempo. Sim, palmas para a pluralização de opiniões e ampliação do espaço público de debate, embora a ampliação seja acompanhada da superficialidade e banalidade. O ponto crítico que quero pontuar não é sobre o direito de opinar, que deve ser garantido, nos limites da lei. Meu desconforto vem mais especificamente da proliferação descontrolada de vozes de cientistas que viraram na realidade opinistas, utilizando a sua autoridade e postura de promotor do conhecimento para opinar sobre qualquer coisa, muitas vezes temas totalmente descolados de sua expertise e área de pesquisa.
Cientistas devem ter, sim, compromisso social. Necessitam ponderar a relevância do que pesquisam e buscar ampliar o impacto dos resultados relevantes de suas atividades, mediante socialização do conhecimento e amparo a políticas públicas. Mas não me refiro a este louvável esforço. Louvo o compromisso público do cientista, mas rechaço sua transgressão ao mero diletantismo e histrionismo. A atitude de ter sempre uma opinião a ser propagada, com ares de autoridade, mesmo que tenha pouco a ver com o cerne de seu trabalho investigativo.
Todos queremos ser intelectuais. Poderia se tratar de uma opção pelo perfil filosófico ou por uma vertente científica generalista, embora seja muito mais desafiador ser generalista atualmente do que no século XV, lidamos com muito mais informações e de forma muito mais rasa. Ou você conhece alguém do seu convívio com mais de 5 graduações em áreas variadas do conhecimento e pesquisas científicas consolidadas sobre cada uma delas? O conhecimento se desenvolveu, aprofundou e especializou. Como Max Weber já previa no ensaio ˜A ciência como vocação˜, de 1917:
“[…] a ciência atingiu um estágio de especialização que ela outrora não conhecia e no qual, ao que nos é dado julgar, se manterá para sempre. A afirmação tem sentido não apenas em relação às condições externas do trabalho científico, mas também em relação às disposições interiores do próprio cientista, pois jamais um indivíduo poderá ter a certeza de alcançar qualquer coisa de valor verdadeiro no domínio da ciência, sem possuir uma rigorosa especialização.” (WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 2011, p. 26)
Não conseguimos ser cientistas de tudo. Como cidadãos, podemos filosofar livremente (respeitada a autoridade do filósofo), ter opinião, conceder opinião, nos manifestar, ter um blog. Mas usar a posição e autoridade de cientista, professor/a de tal área, para palestrar, conceder opinião sobre tema distante de sua área de pesquisa e expertise é algo bem diferente.
Sempre fui muito crítico do jornalismo varejista, que além de desrespeitoso com o timing do cientista, se autoatribui competências de opinar sobre qualquer tema. Mas, em especial na área da política e economia, o jornalismo se supera. Se para questões de medicina e ciências duras, a mídia costuma entrevistar cientistas especialistas da área, para os temas político-econômicos geralmente basta bons comentaristas profissionais, jornalistas de formação. Ignoram a profundidade e especialidade necessária para se analisar fenômenos econômicos, políticas e sociais, nacionais e internacionais. Como tais, os comentaristas ou opinistas de ocasião privilegiam a conjuntura, o imediatismo da notícia fresquinha e, obviamente, a linha editorial do veículo de comunicação. Ignoram o debate e o lastro de pesquisa científica que cada tema carrega. Mas jornalistas serem assim por ofício é uma coisa, outra é os cientistas do nosso tempo emularem o perfil jornalístico do comentarista/opinista.
Ciência é diferente de opinião. Boa ciência produz boas opiniões, no sentido de mais embasadas e metódicas. Isso não quer dizer que na atividade científica não há diferentes valores e visões de mundo, pois não existe “ciência sem pressupostos” (WEBER, 2011, p. 42). Mas os “fundamentos gerais de nossa orientação no mundo” (WEBER, 2011, p. 43) devem ser acompanhados de um esforço honesto de verificação empírica sistemática, orientada por clara definição e operacionalização conceitual. Mais do que isso, a ciência é fundada na dúvida e verdades provisórias e parciais. A opinião geralmente carrega apostas mais arriscadas e certezas que vão além do esforço científico, ou representariam nesse âmbito, meras premissas ou hipóteses a serem testadas. Além disso, ciência e opinião têm tempos diferentes. Pesquisa científica leva tempo, envolve muitas pessoas, e tem alto custo. Opinião se produz a todo tempo, basta refletirmos e acharmos. Portanto, quando um cientista é capaz de comentar e avaliar temas diversos, a toda hora, quase instantaneamente é sinal de uma de duas coisas: ou possui tempo, capacidade e recursos invejáveis que o permite manter pesquisas diversas e aprofundadas sobre muitos temas relevantes ou está sendo mero opinista.
Reitero que o problema não é emitir opinião em si, a despeito dos casos que monopolizam nossa timeline ou notificam a todo momento grupos de Whatsapp. Todos temos direito de nos manifestar respeitosamente e os incomodados que saiam do grupo ou silenciem o amigo indesejável. O problema, como dito, é sermos opinistas com a cara de cientista, usando selo institucional, recursos de instituições científicas e o rótulo de especialista na temática. Sejamos opinistas com convicção quando for o caso e cientistas quando tivermos as devidas competências. Essa honestidade acadêmica pode trazer mais humanidade e transparência à ciência, vítima de tantos ataques e descrédito nos tempos de hoje.
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