Mohammed Nadir
“We doctors are sometimes inclined to regard preventive medicine as a recent, sophisticated specialty, relating to vaccination, innoculations, and other highly specific and scientific procedures. But in fact people have been taking precautions against possible illness and disaster since the dawn of time.”[2]
É unanime que a pandemia do Covid-19 metamorfoseou nossa maneira de ser e estar no mundo. Porém isso não faz e não fará dela um fato transformador da história da humanidade, tendo em conta a concepção braudeliana das mudanças estruturais que acontecem na história.
Tem se lido e publicado muita literatura sobre a Covid-19. Filósofos, economistas, militares, ambientalistas e cientistas socais, epidemiologistas e infectologistas, e até geopolíticos têm trocado discursos retóricos para determinar o responsável, tendo em vista o choque desencadeado entre as duas potências, EUA e a China. Em termos nacionais e internacionais temos observado o decreto de estados de emergência em vários países quer do Mundo ocidental quer dos países extras ocidentais (Africa e Asia), em termos internacionais temos constatado o regresso duma espécie de Limes Romano com fortificações e comportamentos fronteiriços rígidos para impedir a entrada neste caso não dos povos bárbaros, mas de pessoas doentes e infetadas. Discursos e narrativas que foram minuciosamente concebidos para convencer a população a uma maior adesão a esse contexto/ estado de emergência.
Ora, de um perigo à saúde publica até a declaração de estado de guerra, vários líderes mundiais tentaram unificar sua nação para se proteger perante um inimigo comum. Obviamente que em países com democracias consolidadas houve debates mais ou menos civilizados sobre essas medidas, mas sem nunca pôr em causa o consenso e a união nacional perante um vírus letal e invisível.
Outros líderes tentaram ao mesmo tempo enfrentar a epidemia com firmeza, mas sem deixar de tirar proveito político para se destacar como salvadores da pátria (o exemplo de Macron é bem interessante nesse caso). Outros viram no coronavírus uma doença banal que não tardaria a passar, tais como Suécia, Reino Unido e EUA Muito embora o país norte-americano tenha disponibilizado trilhões de dólares para proteger a sua economia e para ajudar os mais vulneráveis não obstante o desdém do Donald Trump. O caso brasileiro é emblemático, porque apesar de o país ter declarado estado de calamidade para enfrentar a pandemia, houve uma politização da doença, fruto da já existente polarização aguda e excecional pela qual o país tem passado.
Deixando o lado político e olhando para a literatura socio filosófica, nos deparamos com várias leituras segundo a linha de pensamento de cada autor que, aproveitaram a epidemia para veicular sua linha de observar o mundo. De Agamben, que desde o primeiro artigo sobre a corona vírus considerou a COVID 19 uma espécie de conspiração que visa declarar o estado de exceção[3], passando por Zizek, que viu no coronavírus uma ameaça ao bom funcionamento dos mercados mundiais e dai a necessidade de reorganização da economia mundial através de uma organização global que pudesse regular e controlar a economia, (mesmo que fosse necessário limitar a soberania dos estados nacionais) e finalmente um apelo de uma mudança radical para salvar a humanidade perante a crise do capitalismo[4]. Ainda que a análise de Zisek seja uma ideia feita, não parece que haja elementos estruturais para que aconteça essa desejada mudança radical.
Por sua vez David Harvey, numa outra abordagem, traz luz sobre a relação do homem com a natureza e considera que o COVID-19, nada mais é do que uma vingança da natureza sobre os quarenta anos de abuso e maltrato ambiental, fruto de um violento e desregulado extrativismo. Na sua opinião e apesar de a coronavírus poder provocar consequências nefastas a longo prazo, tais como o desemprego, despedimentos em massa, inteligência artificial, ele -o vírus- tem efeitos positivos, um deles o derrube do estilo consumista dos países opulentos que impactou negativamente o meio ambiente. Nessa senda, Harvey afirma o quão diminuiu a poluição resultado das quarentenas pelo mundo fora, fazendo os cisnes voltarem ao canal de Veneza[5]!
Boaventura Sousa Santos também não ficou fora do debate e numa obra[6] recente A Cruel Pedagogia do Vírus, deixou clara essa relação desequilibrada entre o homem e a natureza e que uma das lições ou dimensões (culturais, sociais e económicas) do vírus é o fato de ele refletir as desigualdades estruturais que caracterizam o hipercapitalismo[7].
Desse modo, podemos dizer que tanto hoje como ontem as epidemias nunca deixaram indiferentes as sociedades. Se a maioria dos autores seculares acima referidos tendem a capitalizar o vírus e através dele fazer uma sociologia das ausências e um grito dos invisíveis (migrantes, refugiados, minorias etc), também no passado houve debates e políticas sanitárias para proteger as populações das epidemias e das doenças infeciosas.
Uma tradição higiênica e sanitária no Oriente Médio e África
Nos mundos extraeuropeus houve uma tradição higiénica e sanitária para proteger-se das doenças e epidemias e praticas curativas em tempos de grandes crises de saúde publica. Um dos espaços que historicamente desempenhou um papel de liderança em termos das ciências da saúde, da cura e da prevenção são os países do Oriente Médio, bem como na África.
Na península arábica, principalmente no período do advento da islã, com os rituais que esta religião trouxe, a questão de saúde e de higiene passou a ser um pilar da vida e do espaço do crente muçulmano[8]. Não apenas é preciso fazer ablução cinco vezes ao dia, mas é necessário ser limpo para se dirigir ao divino e bem assim estar suficientemente apresentável e limpo para entrar num espaço de culto tão sagrado como a mesquita. Numa das surat/capítulos corânicos podemos ler o seguinte “e, estão-vos permitidas todas as coisas sadias, assim como vos é lícito o alimento dos que receberam o Livro, da mesma forma que o vosso é lícito para eles”[9].
“Ó fiéis, sempre que vos dispuserdes a observar a oração, lavai o rosto, as mãos e os antebraços até aos cotovelos; esfregai a cabeça, com as mãos molhadas e lavai os pés, até os tornozelos. E, quando estiverdes polutos, higienizai-vos.”[10]
A própria comida evidencia esse carater de limpeza, citemos “Estão-vos vedados: a carniça, o sangue, a carne de suíno e tudo o que tenha sido sacrificado com a invocação de outro nome que não seja o de Deus; os animais estrangulados, os vitimados a golpes, os mortos por causa de uma queda, ou chifrados, os abatidos por feras, salvo se conseguirdes sacrificá-los ritualmente”[11]. Em outro texto podemos ler “como Deus vos tem disposto, porque Ele estima os que arrependem e cuidam da purificação”[12]. Para além dessas recomendações, a Islã sempre teve uma relação de cuidado com o meio ambiente, assim encontram-se muitas Ahadith/ palavras do Profeta Muhammad, avisando e aconselhando não poluir os rios, não beber das águas estagnadas e não sujar o meio ambiente[13]. Esse conjunto de medidas e recomendações são formas e estratégias do islã e da chari‘a islamiyya, isto é, legislação religiosa muçulmana para se manter higiênico e saudável e prevenido de qualquer enfermidade.
No que diz respeito às doenças infeciosas e epidemias em terras do Islã, encontra-se toda uma serie de disposições de jurisprudência/ahkam fiqhiyya que trata não apenas da prevenção, mas das medidas que protegem nos momentos de pandemias. A leitura dos ahadith sunniya (ditos do profeta Muhammad) deixa claro que, uma vez declarados e descobertos casos de doenças contagiosas e que se transformam em epidemias a escala maior, tais como a peste – conhecida nas narrativas árabes como al-Ta‘un الطاعون e a lepra al-juda’m الجذام . Nesse contexto, a recomendação da jurisprudência e os ahadith são claros, é preciso evitar frequentar os infetados pelo Waba’ (الوباء) /vírus/epidemia, assim como evitar entrar e viajar a lugares infetados e em caso de passagem por um lugar infetado não sair de modo a não espalhar a doença. Numa das narrativas/hadith do profeta Muhammad pode se ler o seguinte sentido “a peste /al-Ta‘un e uma enfermidade que Deus faz com que seus servos enfrentem, quando ouvirem de algum lugar infetado não entreis, e se estiveis em lugares infetados não fujais“[14] . Noutra narrativa do profeta pode se ler ‘”fujais da lepra como se fosse um leão salvagem”[15].
O mesmo pode ser percebido numa história que teve lugar no período do sucessor /Khalifa do profeta Muhammad, ‘Umar Ibn al-Khattab (foi o segundo califa depois da morte do profeta) que, ao chegar ao Cham (atual Síria e Líbano) e ao ter conhecimento da peste, decidiu prudentemente e preventivamente retornar com sua delegação a Medina (cidade na atual Arábia Saudita)[16]. A partir desses fatos, evidencia-se que a Islã, como conjunto de leis e rituais orientadores para cada crente e as disposições jurisprudentes deram maior atenção à prevenção por meio da higiene, limpeza, lavagem, proteção (através da não frequência dos doentes, de não entrar ou sair dos lugares infetados) das doenças infeciosas (al-‘Adwa)[17].
Em termos transcendentais e filosóficos, as epidemias e a finitude são tidas no Islã como uma provação (bala’ بلاء) ao crente que nela deve mostrar força, paciência, rigor, disciplina no que diz respeito ao acato das recomendações de saúde e fé no destino divino para superar a aflição. Numa passagem corânica pode ler-se o seguinte “Bendito seja aquele em cujas mãos está a Soberania, e que é onipotente; que criou a vida e a morte, para testar quem de vós melhor se comporta – porque é o Poderoso, o Indulgentíssimo”[18]. Nessa ótica filosófica e espiritual, a morte e as doenças contagiosas são vistas não como um castigo divino, mas sim como um destino celestial. A própria morte e finitude, nesse contexto de epidemia/al-‘Adwa é encarado como uma bênção para a vida eterna, uma vez que quem morre durante a peste é considerado um mártir (shahid)[19].
Por outro lado, deu se um cuidado especial ao bom tratamento dos doentes, seja em que estado estiverem, e até os últimos dias na medida em que nunca se sabe quando se possa surgir uma cura.
Além destes dispositivos preventivos, constata-se também que a jurisprudência muçulmana (ahkam fiqhiyya), tem se dedicado a resolver as dúvidas relativas ao cumprimento dos rituais durante as doenças (al- ‘Adwa) bem como durante as pandemias (al waba’). Nesse contexto é recomendado evitar as aglomerações para que não haja mistura de infetados e de saudáveis e por conseguinte propagação das doenças. Daí que o infetado tem de ficar em isolamento, não deve frequentar as mesquitas para não transmitir sua enfermidade e contagiar outros crentes e evitar as orações coletivas.
Por outro lado, quando a doença se propaga em um local, as recomendações jurisprudentes são a favor do fechamento dos lugares de culto e até da anulação de eventos grandiosos e simbólicos em termos religiosos, tais como a peregrinação a Mekka[20], que é um dos cinco pilares do Islã e um dos sonhos de todos os fiéis. Vale sublinhar que em diversos países muçulmanos foram decretados estados de emergência sanitária e foram encerradas as mesquitas e a própria peregrinação (hajj) a Mekka foi cancelada pelo reino da Arabia Saudita, o que deu para ver pela primeira vez a al-Kaaba e seu espaço ao redor vazio de qualquer crente[21].
O mesmo foi decretado em relação a peregrinos ugandeses, que em 2001 foram proibidos de cumprir seu hajj e ir a Mekka, uma vez que o país estava infestado pelo vírus do ébola. Ainda em relação ao hajj, por norma obrigatória durante os últimos dias da peregrinação osperegrinos (hujaj) tem que cortar seus cabelos, ora se o peregrino tiver uma doença que não lhe permite cortar seu cabelo, recomenda-se a jurisprudência de evitar tal ritual para não contaminar os outros. Foi justamente essa ameaça de contágio que levou a Arabia Saudita, perante a pandemia de Covid 19, a cancelar o período anual da peregrinação que habitualmente junta milhões de fiéis vindos de todos os países do mundo. A base legal é o versículo seguinte de “Fazei dispêndios pela causa de Deus, sem permitir que as vossas mãos contribuam para vossa destruição”[22]. Em outro lugar há uma explícita recomendação sanitária para não propagar doenças. Citemos: “E cumpri a peregrinação a Umra, a serviço de Deus. Porém, se fordes impedidos disso, dedicai uma oferenda do que vos seja possível e não corteis os vossos cabelos até que a oferenda tenha alcançado o lugar destinado ao seu sacrifício. Quem de vós se encontrar enfermo, ou sofrer de alguma infeção na cabeça, e a raspar, redimir-se-á mediante o jejum, a caridade ou a oferenda”[23]. São textos canónicos que evidenciam o cuidado que se deve ser tomado num contexto de crise sanitária.
Outro aspecto que também foi contemplado é os casos daquele que propaga a doença contagiosa de forma premeditada. A maioria dos ‘Ulama/ fuqaha , isto é, juristas consideram tal conduta uma espécie de dano irreparável (fasad) que iguala o assassinato de modo indireto. Esse assunto foi frequentemente analisado aquando da HIV e hoje ainda por causa do Covid-19, em que o risco de transmitir a doença a outras pessoas é elevado com o agravamento de não existir tratamento ou uma vacina.
Perante esse perigo, o Islã aconselhou o confinamento, ou seja, se manter afastado das pessoas doentes e/ou dos saudáveis quando a própria pessoa está infetada. O confinamento (ou al-hajr al-ssihi) foi uma prática seguida na terra da islã em tempos em que epidemias como a peste ou a lepra deixavam milhares de mortos. Ironia da história, estamos hoje perante a maior experiência de confinamento jamais vivida desde a gripe espanhola, com a característica do que hoje a humanidade, com todo o seu arsenal tecnológico e sanitário, tem conseguido bloquear a morte de dezenas de milhares de pessoas como acontece com os EUA. Talvez isso nos remeta à nossa fragilidade e ao fato de seremos apenas uma parte de um todo no universo de seres vivos.
Experiências modernas no Norte da África
Em outro espaço, desta vez no Norte de África e num contexto moderno, posterior ao medievo, temos muitas narrativas da época e estudos que descrevem as consequências dessas epidemias, que eram muitas vezes acompanhadas do flagelo da fome.
Num dos trabalhos clássicos sobre as fomes e epidemias no Norte de Africa e no Marrocos, em particular nos séculos XVI e XVII, “Famines et Epidemies au Maroc aux XVIe ET XVIIe Siecles” de Bernard Rosenberger e Hamid Triki, temos um panorama amplo de tamanho dessas catástrofes sanitárias e de suas consequências sobre as populações e o próprio Estado marroquino. Nesse estudo ficamos a saber a história das epidemias no Marrocos e em África, sua cronologia, causas, consequências e repercussões a nível da economia, da demografia, política, sociedade, cultura, crise de consciência, segurança assim como as relações diplomáticas com o mundo exterior.
Segundo o cronista árabe Leão, o Africano, “a peste /al-ta‘un, ou waba’ se manifesta em Berberia (Marrocos e a região do atual Magreb) cada dez, quinze ou vinte cinco anos, e quando advém causa a morte de muita gente”. Nesse prisma, o estudo da história das epidemias tem uma importância maior em termos históricos, uma vez que nos permite ter uma noção da evolução demográfica, da economia, das transformações sociais e dos movimentos políticos.
No caso do período em questão, isto é, o século XVI e XVI são os mais decisivos na formação do Marrocos contemporâneo[24]. Fontes e narrativas árabes e europeias constituem um manancial de informações para reconstruir a história e iluminar tais acontecimentos. Com efeito, se por um lado pouco se sabe sobre as consequências da peste negra do século XIV sobre a população de Norte de Africa, existem provas do que as epidemias do século XV foram mortíferas. São conhecidas as epidemias de 1441-1442 (846 H) e de 1468-1469. A primeira durou 18 meses e causou entre 400 e 500 mortos por dia, já a segunda epidemia causou a morte de 500 mil pessoas nas cidades e 100 mil no campo[25].
Alguns autores encontram origem na queda de Granada e chegada de muitos refugiados que foram expulsos da península ibérica por decreto dos reis católicos em 1492, sendo que muitos deles trouxeram a epidemia. Um ano depois, em 1493, a cidade de Fez foi atingida pela peste, ao que tudo indica foi trazida pelos refugiados andaluzes, causando vinte mil mortos na cidade entre muçulmanos e judeus[26].
A chegada do século XVI trouxe novos desafios sanitários e de saúde publica. Nesse sentido, a peste e a fome que assolou o país em 1520 e 1521 foi durante muito tempo registrada na memória dos que sobreviveram e que, graças às fontes portuguesas, podemos ter uma ideia da gravidade do horror causado por duas calamidades: a peste e a fome. Por meio das fontes portuguesas da época podemos concluir que a peste de 1521 demorou três anos e matou milhares de pessoas. Foi tão dramática que pessoas começaram a se vender uns aos outros para ter comida e não morrer de fome e doença[27]. Esta foi «tão brava e contagiosa» causando no dizer do cronista português Bernardo Rodrigues (século XVI) tanta morte e aflição «cousa nunca vista nem ouvida»[28].
Perante esse cenário de morte, os efeitos foram plurais, demográficos com a perda de milhares de pessoas, esvaziamento de espaços territoriais e morte de uma elite ilustrada. Em termos políticos, a crise sanitária causou o fortalecimento da dinastia Saadida e o enfraquecimento dos portugueses que ocupavam o litoral marroquino[29].
Em termos econômicos e sociais pode-se dizer que a peste contribuiu para a diminuição dos contatos comerciais; o medo do contágio levou com que as caravanas que vinham de África subsaariana e do Sudão Ocidental parassem de chegar. Por outro lado, o recuo da população causado pela morte de milhares de pessoas levou ao esvaziamento dos centros urbanos e à predominância do nomadismo.
Superada essa crise, um outro aparecimento da peste em 1557-1558 foi tão devastador que, ao atacar a cidade de Fez, causou três mil mortos por dia ao longo de dois meses e na cidade de Marrakech deixou mais de 300 mil vítimas, informação tanto atestada pelo cronista marroquino al-Nasiri, na sua obra al-Istiqsa’ bem como por fontes portuguesas. As mesmas narrativas afirmam a morte de 7500 da comunidade judaica marroquina[30].
Em finais do seculo XVI e início de XVII 1592 verifica-se o retorno das epidemias como fator de desequilíbrio político, econômico, demográfico e sociocultural. Nesse sentido o waba’/epidemia que assolou o país de 1597 a 1608 e /ou 1620 foi fatal, tendo em consideração o número de mortos, mil por dia na cidade de Fez, dois mil por dia na capital Marrakech e um total de 450 mil segundo uma fonte espanhola[31] citada por Rosenberger.
Politicamente falando, a peste enfraqueceu o Makhzan/ aparelho estatal e a fazenda pública, visto que o comércio estagnou, bem como atingiu as forças de produção jovens e as forças pensantes dos letrados. O carisma com a qual o Sultão governava e controlava perdeu sua eficácia dando lugar à violência e à anarquia. Tal estado político permitiu a ingerência estrangeira sobretudo dos espanhóis que tinham um projeto de expansão permanente no Norte de África e em particular Marrocos[32] .
Terminada a fase áurea de Muhammad al-Mansur al-Dahbi, abriu se uma nova era de instabilidade, em boa medida causada pelos desastres sanitários. O século XVII foi uma continuidade de epidemias, com agravamento do vazio político e da anarquia geral. Foi nesse contexto que surgiu a dinastia ‘Alaouita, que reina desde então e até hoje em Marrocos, marcando dessa forma uma nova fase da história marroquina.
Questionamentos terrenos e transcendentais
Os dramas causados pelas epidemias na terra do Islã levantaram questionamentos terrenas e transcendentais tal como: seria um castigo divino? Ou um atraso na medicina? Seria um sinal do declínio político e econômico em relação ao Ocidente industrial?
Hoje também se fazem os mesmos questionamentos: onde falharam os sistemas de saúde das grandes potências? Por que essa paralisia perante um vírus como Covid 19? qual é o sentido da mortandade que tem sido registrada pelo mundo fora? Eis que as emoções se misturam com a razão.
Há quem considere, perante a incapacidade de enfrentar o vírus, a ideia de se conformar ao fatalismo e ao destino da morte e da finitude e há quem veja nessa epidemia um momento de repensar nossa maneira de ser e estar no planeta terra. Este vírus, que veio para ficar e que seguramente não será o único, abre uma janela de incertezas sobre nossa fragilidade e nossa eterna finitude, ideias caras para pensadores muçulmanos como Averróis ou Ibn Arabi e toda a mística muçulmana.
[1] Mestre e Doutor em História pela Universidade de Coimbra, pós graduado em Relações internacionais, diplomacia e meio de comunicação pela Universidade Complutense de Madrid-Espanha, pós doutorando em Direito pelo PPGD-Universidade Federal de Santa Maria, RS. Pesquisador do GPDS-UFSM, pesquisador associado do GECAP-UFSM, do CHSC-FLUC- Universidade de Coimbra, do Centro de estudos Africanos da Universidade do Porto- Ex docente na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e na Faculdade de Letras da Universidade de Rabat e na RI-UFSM.
[2] Una MacLean: Yoruba Sickness Behavior, IN: London JB (ed), Social Anthropology and Medicine, ASA Monograph # 13. London: Academic Press, 1976.
[3] Giorgio Agamben e al, Sopa de Wuhan, ed. Aspo, Março 2020, artigo de 26 de febrero “La invención de una epidemia” pp. 17-21.
[4] Slavoj ŽiŽek, “El coronavirus es un golpe al capitalismo a lo Kill Bill…” in Sopa de Wuhan, pp. 21-28.
[5] David Harvey, Política anticapitalista en tiempos de coronavirus, …” artigo de 22 de março de 2020 in Sopa de Wuhan, pp. 79-97.
[6] Boaventura de Sousa Santos, A Cruel Pedagogia do Vírus, Edições al-Medina, Coimbra, 2020, pp. 32.
[7] Ibid.
[8] Husam Hassan Husni abu Hamad, Ahkam naql al-Amrad al-Mu‘diyya : Dirasa fiqhiyya, dissertação de mestrado, Universidade al-Quds/Jerusalém Palestina, 2016, p.
[9] O Corão, Surat al-Ma’ida, Aya/versículo, 5
[10] Ibid, versículo 6.
[11] Ibid, Versículo 3.
[12] O Corão, Surat al-Baqara, Aya/versículo 222.
[13] Al-Bukhari , al-Sahih, hadith numero 239 e 283 e 2472.
[14] Muslim, al-musnad al-Sahih, Livro, al-salam, cap. al-Ta‘un/a peste, hadith número 2218 .
[15] Al-Bukhari, al-Sahih, Livro, al Teb/medicina, cap. al-Juda’m/ a lepra, hadith número 5707.
[16] Al-Hachemi, Mawqif al Chari‘a al-Islamiyya mina al-Amrad al- Mu‘diyya, (a posição da lei canónica muçulmana/chari ‘a para com as doenças infecciosas), link. sultan.i@qu.edu.qa
[17] Al-‘Adwa significa em árabe doenças contagiosas. Da raiz ‘dw o que curiosamente tem algo em comum de ponto de vista etimológica com al-‘Aduw, isto é, o inimigo. Desse prisma as doenças infeciosas, além de infetarem outras pessoas saudáveis, são tidas como um inimigo para a saúde publica.
[18] O Corão, Surat al-Mulk, Aya/Versículo 1 e 2.
[19] Al-Bukhari, Sahih al -bukhari, livro da medicina, cap. ajr al-Sabir fi al-Ta ‘un (recompensa de quem é paciente durante a peste), hadith número: 5733.
[20] Husam Hassan Husni abu Hamad, Ahkam naql al-Amrad al-Mu‘diyya : Dirasa fiqhiyya, dissertação de mestrado, Universidade al-Quds/Jerusalém Palestina, 2016, p. 54.
[21] O mesmo foi registado no Vaticano, em que foram canceladas as homílias do Papa assim como as visitas de milhares de fiéis à praça de São Pedro. O mesmo não se pode dizer relativamente ao Brasil, em que houve uma discussão acesa entre governantes e líderes religiosos, que não só desacreditaram na existência do coronavírus, como desafiaram as autoridades dizendo que indo as igrejas nada iria acontecer e haveria curas milagrosas pela oração.
[22] O Corão, Surat al baquara, versículo número. 195
[23] Ibid, versículo número 196.
[24] Bernard Rosenberger e Hamid Triki, «Famines et Epidémies au Maroc aux XVIe ET XVIIe Siècles» in Hesperis Tamuda, Vol. XIV – Fascicule unique, Rabat, 1973, p. 110.
[25] Dr H.P.J. Renaud, «Recherches historiques sur les épidémies du Maroc. Les « pestes » des XVe et XVIe siècles », in. Mél. D’études luso-marocaines dédiées à la mémoire de David Lapes et Pierre de Cénival. Lisboa, Paris, 1945, pp. 363-389; Bernard Rosenberger e H. Triki, art.cit, p. 113.
[26] Ibid, p. 114.
[27] Bernardo Rodrigues, Anais de Arzila, t. I, p. 326; B. Rosenberger e H. Triki, art.cit, pp.
[28] Bernardo Rodrigues, Anais de Arzila, t. I, p. 327.
[29] B. Rosenberger, art.cit, Hesperis Tamuda, Vol. XIV – Fascicule unique, Rabat, 1973, p. 143.
[30] B. Rodrigues, Anais de Arzila, t. II, suppl., pp. 475-476; B. Rosenberger, art.cit, Vol. XIV, p. 153.
[31] H. Sancho, Relaciones mercantiles entre Cadiz y Marruecos a fines del siglo XVI, Mauritania, agosto 1946, p. 184.
[32] B. Rosenberger, art.cit, p. 163 e 172.
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