No século I d.C. quando Plínio escreveu História Natural, o livro que contém a maior parte das informações que temos sobre os artistas gregos, encontramos uma tríplice divisão das artes plásticas. Na antiguidade eram chamadas fusoria, plastica e scultura, sendo a fusoria a arte de fundir o metal, plastica a arte de modelar a argila ou cera e scultura a arte de trabalhar a pedra. Entretanto, conforme Rudolf Wittkower, foi somente na primeira década do século XV, durante o período do Renascimento, que tivemos as primeiras consolidações das artes que hoje chamamos de visuais, como área do conhecimento.
A hierarquia medieval estabelecia uma divisão do conhecimento em duas linhas. Uma delas era a das “artes liberais”, que na época se limitavam às ciências linguísticas e à matemática, sendo o desenho geométrico o mais próximo se tinha de algo relativo às artes visuais. Era nessas artes que se desenvolvia o pensamento intelectual. A outra linha artística denominada “artes mecânicas”, contemplava a pintura, a escultura, o artesanato, entre outras, e dependia somente de uma ação de habilidade mecânica. Nesse momento, surgiu o conceito de um novo perfil de artista, uma pessoa essencialmente diferente dos artesãos e trabalhadores manuais. Agora o artista exercia sua força intelectual e criativa. A nova geração de pintores, escultores e arquitetos lutava para ser admitida nas artes liberais, colocando-se no mesmo nível dos retóricos, poetas e estudantes de geometria. Para isso seria preciso reconhecer os fundamentos eruditos da sua arte, passar por um aprendizado teórico e se possível contribuir para a teoria das artes. A partir de então, segundo Wittkower, as considerações teóricas passaram a acompanhar a prática artística. Esse fato explica o surgimento de inúmeros tratados de pintura e escultura durante a era renascentista.
Leon Batista Alberti, em seu tratado de escultura “De statua”, apresenta uma divisão interessante da prática escultórica em duas categorias: modeladores e os escultores. Os escultores eram de fato os mais respeitados, pois trabalhavam com a supressão de matéria, o que de um ponto de vista técnico não abre muita margem para erros de construção. Sem contar na dificuldade de tratamento dos materiais, geralmente pedras e madeiras. Já os modeladores trabalhavam a forma tridimensional por adição de matéria e geralmente utilizavam materiais mais plásticos como, por exemplo, a argila ou a cera para posteriormente promover a transferência de material através de formas, passando da argila para o gesso ou da cera para o bronze, e assim por diante.
Foi somente no começo do século XX, no chamado modernismo das artes visuais, que os artistas libertaram a escultura de alguns cânones tradicionais que perduraram na disciplina por anos. Surge nesse período uma nova modalidade de produção tridimensional, que pode ser denominada como construção, bricolagem ou assemblage. Cunhado pelo pintor e gravador francês Jean Dubuffet (1901-1985), o conceito tem sua origem nos trabalhos de Pablo Picasso (1881-1973) e Georges Braque (1882-1963), fazendo menção a obras que, conforme ele, “vão além das colagens”. O conceito que norteia produções artísticas que se utilizam de assemblage é a “estética da acumulação”: todo e qualquer tipo de material pode ser incorporado à obra de arte. Nesse sentido, a obra de arte tem por objetivo romper efetivamente as fronteiras entre arte e vida cotidiana. O mesmo tipo de ruptura já era ensaiada pelo dadaísmo, especificamente com os ready-made de Marcel Duchamp (1887-1968) e pelas obras Merz (1919), de Kurt Schwitters (1887-1948). Na ideia de assemblage os objetos díspares reunidos na obra, ainda que produzam um novo conjunto, não perdem o sentido original. Antes de uma síntese, trata-se de justaposição de elementos, na qual é possível identificar cada peça no interior do conjunto mais amplo.
Rosalind Krauss, em seu texto “A escultura no campo ampliado”, publicado originalmente em 1979 pela revista October, sugere uma nova abordagem do espaço que ultrapassa os limites da noção tradicional da escultura, marcando passagem para a pós-modernidade. Essa conceituação, a meu ver, é interessante para compreender ou iniciar a compreensão do que vem a ser a arte contemporânea. Conforme análise da autora, a noção de escultura manteve-se intacta da Grécia antiga até o fim do século XIX e início do XX, tendo as primeiras quebras na lógica tradicional com Rodin e Brancusi. Em comparação com a história da pintura, a historiografia da escultura sofreu muito menos oscilações no modo de produção ao longo do tempo. Entretanto, a partir do século XX essa situação começa a mudar e o valor do espaço tridimensional cresce entre os artistas visuais. Assim, conforme a autora, ao longo dos anos 70, o termo escultura foi utilizado para qualificar uma série de trabalhos heterogêneos, esgaçando o conceito desta categoria e expandindo seu significado sem justificativas adequadas. A dificuldade de enquadrar a nova produção em alguma categoria tradicional provocou o alargamento do termo escultura. Segundo as palavras de Krauss (p.129):
O novo é mais fácil de ser entendido quando visto como uma evolução de formas do passado… confortamo-nos com essa percepção de similitude, com essa estratégia para reduzir tudo o que nos é estranho, tanto no tempo como no espaço, àquilo que já conhecemos e somos.
No contexto que pretendo apresentar, “campo ampliado” não seria uma designação exclusiva da escultura, mas sim, uma área comum da arte, uma espécie de centro de encontro onde todas as habilitações dialogam. Em síntese, o campo ampliado seria a própria arte contemporânea do ponto de vista produtivo. A escultura, por exemplo, é uma das portas de acesso a esse campo, assim como a pintura, a gravura, o desenho, a cerâmica, a fotografia, o teatro, enfim, as disciplinas curriculares encontradas em cursos de artes.
Ricardo Basbaum, artista, professor e crítico de arte, há algum tempo vem trabalhando o conceito “artista etc”. De um modo geral, esse conceito trata da relação entre as atividades que um artista exerce paralelamente à sua prática artística e como essas atividades influenciam o trabalho do artista e ao mesmo tempo são por ele influenciadas. Este artista etc, segundo Basbaun, decorre do artista multimídia, do intermídia e do conceitual. Configura o perfil do artista contemporâneo, que produz seu trabalho de modo híbrido. Essas obras que surgem no limiar entre pintura e escultura ou fotografia e desenho, ou então uma instalação performática que não se define nem como teatro, arquitetura e tampouco como escultura, criam a sensação de que técnica nas artes é algo superado e adormecido no modernismo.
De fato, se as produções contemporâneas em arte forem analisadas simplesmente pelo viés produtivo, realmente se constata o desaparecimento da pureza técnica ou da habilitação específica do artista. Entretanto, se pensarmos no campo de ensino das artes e analisarmos do ponto de vista que contemple a formação destes artistas, de como eles construíram a sua noção de arte, de espaço e de produção, perceberemos que todos, ou boa parte destes, buscaram uma formação específica e então procuraram expandir sua linguagem de modo transcendente às bases da sua habilitação original, tornando-se assim um artista etc, ou então retomando o conceito de Kraus, um frequentador do campo ampliado. Ou seja, formaram-se pintores, escultores, desenhistas, gravadores ou ceramistas, produziram nas suas áreas e naturalmente expandiram sua linguagem original para o tempo e espaço total da arte, que converge para o “campo ampliado das artes”.
Isso revela que, se, por um lado, os artistas ditos contemporâneos promovem a quebra da tradição e rompem com os limites disciplinares da arte criando obras híbridas; por outro lado, isso só é possível por haver uma tradição ou formação a ser transgredida. Por esse motivo, acredito que a arte no âmbito do ensino deve ser divida em habilitações, ainda que, o objetivo pretendido para o aluno seja a transgressão dessa divisão, ou melhor, a transcendência por meio de maturidade criativa.
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