Disse uma vez o poeta:
“E você ainda acredita
Que é um doutor, padre ou policial
Que está contribuindo com sua parte
Para o nosso belo quadro socialEu é que não me sento
No trono de um apartamento
Com a boca escancarada cheia de dentes
Esperando a morte chegarPorque longe das cercas embandeiradas
Que separam quintais
No cume calmo do meu olho que vê
Assenta a sombra sonora dum disco voador” (Raul Seixas, Ouro de Tolo, 1973)
Qual é o sentido de mantermos nossas vidas com a suposta tranquilidade de que tudo está bem? Com a arrogância de que conseguimos nos adaptar ao apocalipse. Desinfetamos nossas compras e deliveries, descobrimos novas plataformas de entretenimento, interpretamos no mundo perfeito nas redes sociais, compramos máscaras mais confortáveis e decoradas, transformamos nossa depressão decorrente do isolamento em força para inovar em nossas vidas e profissões, enterramos desoladamente nossos queridos e voltamos à casa para nos proteger. Tudo passa, tudo passará. Tudo muda, mas nada mudará.
Assistimos boquiabertos em nossos sofás com confortável chaise a imensa tela de LED 4k transmitir a desgraça de um governo neoautoritário, constituído estrategicamente para exterminar a possibilidade de uma sociedade mais diversa, inclusiva e democrática. O autoritarismo seduz bastante gente. É o desejo de por fim ao sofrimento da vida por um governo supostamente forte que designa bodes expiatórios para justificar exterminá-los. Eram uma vez os judeus, agora são os professores, LGBTQI+, pseudo comunistas e socialistas, jornalistas, artistas críticos, democratas, negros, mulheres, etc. Tudo o que real, ou imaginariamente, contesta a ideia de que somos um povo branco, “civilizado”, pacífico, crente em Deus (e um só Deus) e macho.
Me sinto destroçado, por ter acreditado em nosso país e em instituições que hoje revelam a continuidade de sua estrutura autoritária, retrógrada, corporativista e autointeressada. Apenas preocupada com as vantagens particulares de alguns de seus quadros que roubam escancaradamente o sentido coletivo institucional e nacional. O que resta do compromisso nacional e coletivo das Forças Armadas, das Forças Policiais, do Ministério Público, do Judiciário, da Universidade, e de outras instituições de Estado, quando seus membros são incapazes de reconhecer seus limites, responsabilidades e falhas institucionais. O que fazer quando tais instituições são desvirtuadas, fugindo do seu sentido e responsabilidade pública e atuando para além da isonomia estatal, defendendo cegamente lados políticos e reprimindo institucionalmente visões opostas?
A autonomia do Estado frente a interesses exclusivistas sempre será limitada. Por isso, dentro e fora das instituições públicas é fundamental que haja luta social para que elas sejam responsáveis, minimamente representativas e submetidas a interesses da sociedade ampla e não de governos e elites particulares. Sempre manifestei isto, inclusive quando governos que eu apoiava estavam no poder. Por isso, a luta na micropolítica é tão importante. Não se indignar com a corrupção e o desvio de funções em instituições públicas, sobretudo as em que eventualmente atuamos, é sinal de cumplicidade e anti-cidadania. É um compromisso ético o engajamento constante para que as instituições em que atuamos respeitem a legalidade, a sua função social, a recusa ao corporativismo e seus limites de atuação.
A vida dos que não morreram segue. E isto não é óbvio, pois a existência consiste justamente na inquietude; na luta pelo que acreditamos como povo frente a ameaças crescentes à nossa sociedade, vida e liberdade.
Créditos da Imagem: “Cruzando Jesus Cristo com Deusa Schiva”, de Fernando Baril (1996).
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