A chegada de 2020 promete grandes impactos ao servidor público brasileiro, sobretudo aos produtores de conhecimento crítico e formadores das novas gerações. A situação anunciada merece reflexão. Às vésperas do início da tramitação no Congresso Nacional de proposta de nova reforma administrativa do Estado brasileiro, temos uma cultura generalizada de que os servidores públicos são peso morto na economia, de que estaríamos melhores sem eles, de que enriquecem às custas da população, de que possuem dezenas de privilégios injustificáveis, de que “mamam na teta” do Estado. Minha crítica a esta visão simplista vai em duas direções.
A primeira é que não existe “o” servidor público. Há, sim, uma infinidade de carreiras, diferentes estruturas salariais, sistemas de benefícios, formas de recrutamento, direitos adquiridos, influências políticas e vínculos a um ou outro Poder do Estado ou ente da União. Essa diversidade enorme de carreiras e setores implica inclusive destoâncias na capacidade de pressão por garantia de benefícios. Em carreiras tradicionais e com alto grau de autonomia em relação ao accountability público, privilégios se reproduzem. O Judiciário garante capacidade de articular benefícios intermináveis e salários estratosféricos para magistrados, o que cria um lastro de pressões para aumento do teto salarial do funcionalismo em várias áreas. Os militares conseguem manter-se blindados de iniciativas de controle externo e reforma da previdência, embora seus “aposentados” sejam jovens e muitas vezes acumulam novos contratos na estrutura do Ministério da Defesa e Forças Armadas. O que estarrece é que tais instituições são recorrentemente bem avaliadas pela opinião pública, enquanto outras carreiras da burocracia que não possuem altos salários e benefícios dessa magnitude são continuamente criticadas. Talvez seja justamente por isso que os privilégios permanecem.
A segunda direção da minha crítica ataca o mito do Estado inflado no Brasil. Um mito sem sentido, já que o problema no país não é o excesso de servidores, mas a falta de burocracia de qualidade. Peter Evans identificou, já em 1995, que o Brasil possui ilhas de qualidade burocrática, circundadas por zonas do Estado tomadas por indicações de governo (os famosos CCs e suas variantes), ao contrário do Japão, EUA e países do Leste Asiático. Essas ilhas de rara qualidade burocrática são justamente as carreiras com recrutamento rigoroso, com planos de carreira regulamentados e salários que garantem atratividade das melhores mentes, dispostas a dedicar anos de sua vida à preparação para o concurso público. O problema é que são justamente tais carreiras que acumulam poder de barganha diferenciado – o que reproduz desigualdades importantes dentro da própria burocracia pública. Em contrapartida, o Executivo é o lar dos grandes problemas. Ali estão as carreiras menos estruturadas, de menor faixa salarial e com menos garantias relativas às dos demais poderes. Também ali se proliferam os cargos de confiança que recorrentemente trocam a sua atuação técnica pela lealdade política.
A solução não seria eliminar ou destruir o funcionalismo, mas reduzir ao máximo as alocações políticas sem lastro na carreira; equilibrar os sistemas de benefícios, regulamentações e controle público; estabelecer limites no poder de barganha para as categorias mais privilegiadas; e fundar um sistema amplo de equiparações que reduza a amplitude salarial e a descentralização das negociações (submetidas ao toma lá dá cá).
Entretanto, as ideias que circulam na grande mídia sobre a reforma administrativa não seguem por esse caminho. Atacam a ideia de estabilidade das carreiras e o sistema de benefícios, elementos que justamente compensam o servidor público estatutário, que não possui FGTS nem a rede de seguridade social do INSS. Buscam bode expiatório para a crise econômica, novamente no polo mais fraco. Não surpreenderá que os servidores que realmente perderão serão aqueles em áreas desprotegidas, de baixo investimento e com menor poder barganha política. Coincidentemente, são as áreas que a população mais precisa de amparo do Estado, como saúde, educação, assistência social e segurança. Antes, durante e depois disto, seguiremos na luta por um Estado com mais capacidades, qualidade, igualdade e controle social e menos ingerências de governos e interesses particulares de categorias tradicionais que bloqueiam o desenvolvimento do país.
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