Não tem como levar à sério espiritualidades e filosofias africanas (ou de qualquer outra origem) sem entender o papel da música nas sociedades e comunidades humanas. Música é uma linguagem complexa, que muitas vezes substitui outros meios de comunicação nas rotinas sociais. Nas culturas africanas tradicionais isso é óbvio ululante.
O tambor é o instrumento primevo, que aqui adiquiriu o devido status de rei. É, antes de tudo, um meio de comunicação intra e inter-dimensões espaciais e temporais – uma entidade. Um recurso simbólico vivo, que explica e representa a integração de diferentes elementos da natureza e a passagem do tempo em conexões entre passado, presente e futuro. A língua, a dança e o gesto imitam o tambor, que imita o sagrado, e vice-versa. Essas relações só demonstram a capacidade de a música contar histórias não escritas. E elas são as mais brilhantes, as que precisam, por essência, serem lembradas. Por isso, carrego na minha pele a ilustração dessa filosofia de vida – para nunca esquecê-la.

Toda música que representa ideias sociais profundas me fascina – principalmente aquelas de resiliência, resistência e contestação a ordens opressoras – que sopram escondidas da indústria cultural capitalista. Por isso, há muito tempo carrego em mim um etnomusicólogo experimental, que atravessa muros e esquinas para compreender manifestações musicais de sociedades onde me enveredo. Compro instrumentos locais artesanais por onde vou e busco, nos lugares mais inusitados, vivenciar a experiência da música em contextos significativos. Ou seja, pontos em que ambiente, expressão, liturgia e instrumentos se encontram. Não há momento mais sublime das sociedades quando tais coisas estão interligadas.
Na primeira vez em que moramos na África do Sul, em 2013, percorri alguns lugares escondidos em busca de expressões que revelassem a experiência popular do tambor em manifestações culturais de relevância profunda. Uma das marcas mais fortes que encontrei foi o chamado “rito das montanhas”, em um bairro de Joanesburgo chamado Melville, onde um parque público, situado entre montanhas, abrigava informalmente rituais de diferentes religiões — desde evangélicas trazidas pelos colonizadores ocidentais até práticas espirituais tradicionais.
Com coragem — pois todas as recomendações que recebia de pessoas brancas eram para que eu evitasse o local — e, sobretudo, com respeito, consegui dialogar com um líder religioso da ZCC (Zion Christian Church), vertente do sionismo espiritual africano, bastante distinta do israelita. Fui autorizado a participar de um ritual em que os tambores eram aquecidos ao redor de uma fogueira, e o couro era umedecido com terra para não ressecar imediatamente. A preparação era seguida por uma roda ritualística, com toques, danças e cânticos, em que o líder, portando uma bengala, transmitia ensinamentos a quem necessitasse. Foi uma experiência profunda e reveladora dos laços que rituais do povo, perseguidos e marginalizados, mantêm ainda em África, assim como ocorre no Brasil nas religiões de matriz africana.
Outra experiência dessa etnomusicologia experimental que me move encontrei recentemente na descoberta pessoal do Tambor de Sopapo na região central do estado do Rio Grande do Sul. Mas isso é assunto para a segunda parte desse texto.
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