A cada dia que passa, tenho a impressão de que o sistema de formação de pesquisadores e avaliação da pesquisa científica no Brasil é fundado no incentivo à priorização do glamour acadêmico em detrimento da qualidade do trabalho desenvolvido. Tanto em nível de formação acadêmica de pós-graduandos (dissertações e teses) quanto na avaliação da qualificação de produções científicas, pecamos em sobrevalorizar o prestígio e o status.
No âmbito da formação acadêmica, é recorrente a vista grossa na exigência de níveis mínimos de qualidade em trabalhos científicos. É claro que há sempre fatores subjetivos envolvidos na análise de qualidade. Cada avaliador pode possuir parâmetros e critérios básicos distintos. No entanto, creio que pelo menos dois critérios poderiam ser considerados prioritariamente. Primeiro, o uso rigoroso (não rígido) dos estudos e dados com que pesquisadores se propuseram trabalhar. Não estou falando aqui de toda a literatura ou dados disponíveis, mas do recorte específico proposto pelo pesquisador. Se a avaliação da base bibliográfica e dados referenciados for superficial, obviamente o trabalho possui limites. O segundo critério é o desenvolvimento contínuo do estudante naquele estágio de formação. Ou seja, sua evolução, em relação ao que era anteriormente; suas avaliações e produções prévias. Entretanto, fatores mais objetivos como esses são recorrentemente ignorados em prol de análises menos objetivas, possivelmente relacionadas a vínculos pessoais e a agenda de pesquisa do orientador ou avaliadores.
Esse padrão comportamental produz incentivos para a sua reprodução. Certos de que a qualidade do trabalho é fator secundário, a busca por formação e inserção profissional acadêmica acaba recorrentemente baseando-se na construção de vínculos interpessoais e filiação paradigmática que produza status e visibilidade. Se pouco importam os critérios de qualidade científica mínimos do trabalho que desenvolvem, estudantes focam na formação em centros acadêmicos destacados mais pelo charme que carregam do que pela excelência do trabalho acadêmico. A prioridade é criar redes de boas relações interpessoais, realizar formação em centros de grande notoriedade e inserir-se em instâncias de grande prestígio, com base em indicações e vínculos pessoais preciosos. Não é à toa que frequentemente concursos públicos são suspensos judicialmente por conta de favorecimentos ou desfavorecimentos de candidatos construídos desde o tempo da formação acadêmica. Muitos daqueles que se rebelam frente a casos como esses e buscam a via judicial não procuram transformar o sistema. Apenas sentem-se inconformados de não terem sido eles os favorecidos da vez.
Internamente às Universidades, o mesmo ocorre na distribuição de recursos e favores. Muitas vezes, recursos e incentivos são negociados no cafezinho e não em processos públicos e transparentes. Por que tal professor foi selecionado para um cargo de gestão totalmente distinto de suas competências técnicas? Por que aquela quantidade de bolsas de estudos, recursos e espaço físico foram concedidos a tal Programa de Pós-Graduação ou Departamento? Por que tal pesquisador obteve apoio institucional a seu projeto, evento, pesquisa e/ou viagem científica? Processos internos são sofisticados e institucionalizados gradualmente, mas muito das escolhas e direcionamentos de bases pessoais permanecem existindo na cultura institucional. Basta entender que, no passado, professores eram convidados, não selecionados, a ingressar no trabalho docente das Universidades Públicas.
Nas instituições supra-universitárias do sistema de Pós-Graduação e Ciência e Tecnologia (C&T) do Brasil o mesmo parece ocorrer. Favorecimentos e desfavorecimentos de pessoas e instituições às quais pertencem são comuns em definições políticas e técnicas no âmbito de agências de avaliação e fomento. Quem ganhará um financiamento, quais sugestões serão ouvidas em reuniões, que sistema de avaliação será adotado, quem será ou não representante institucional em conselhos são definições que carregam geralmente mais critérios fundados em alianças políticas (inevitáveis) e pessoais do que o debate sério de argumentos ou competências técnicas.
E no âmbito das produções científicas? Decisões e processos editoriais de revistas científicas e editoras de livros são repletos de influências de cunho pessoal e auto interessado. Comportamentos poucos republicanos não são incomuns: prazos colossais de decisão editorial e publicação, pareceres mal fundamentados de avaliadores supostamente às cegas, exigência de contribuição em dinheiro do autor, decisões duvidosas sobre enquadramento ao escopo, e até origem institucional e nacionalidade do autor valem muitas vezes mais que a qualidade do trabalho apresentado. Concomitantemente, a sistemática de qualificação de periódicos científicos segue o mesmo problema da pessoalidade, o que ocorre em duas direções.
A primeira está na adoção ampla do fator de impacto como critério quase exclusivo de avaliação da qualidade do periódico científico. De fato, a popularização da pesquisa científica é um valor essencial na qualificação da ciência. Entretanto, o que pouco se questiona é se é possível auferir a profundidade e qualidade da pesquisa exclusivamente pela sua projeção, que é o que, em essência, o fator de impacto mede. Os incentivos são claros, a popularidade se torna um valor mais importante que a busca pela excelência. O fenômeno do pesquisador pop, sempre presente na mídia e redes sociais, mas que não necessariamente se dedica à produção de pesquisa na vanguarda do conhecimento se torna recorrente. E isso se liga à questão formativa que debati acima. Estudantes percebem mais valor em seguir esse caminho e se filiar a tais práticas, produzindo um círculo vicioso que não assegura o desenvolvimento de pesquisas científicas de excelência e socialmente relevantes. Popularizar a ciência está longe de ser um problema. O desafio surge quando ser popular, adquirir prestígio social e visibilidade tornam-se o fim mais precioso da atividade científica.
A segunda direção problemática na sistemática de qualificação de periódicos científicos está no sistema permanente de favorecimento de periódicos científicos vinculados a instituições de grande prestígio ou significativa influência política nas avaliações. Muitas vezes, fatores subjetivos são adotados como complemento ao fator de impacto, como forma de proteger interesses de sujeitos de preponderância tradicional eventualmente prejudicados pelas métricas vigentes (Google Scholar, Scopus, Web of Science). Aqui, novamente, o prestígio e os vínculos interpessoais contam muito. Complementa o quadro a sistemática supramencionada de bloqueio implícito de produções científicas nessas mesmas revistas de excelente avaliação à jovens pesquisadores, ou mesmo a publicação cruzada de artigos de instituições e Programas que mantém revistas de estrato superior.
O círculo vicioso só se agrava à medida que produções com maior impacto e/ou favorecidas institucionalmente ainda são o critério principal de avaliação e distribuição de bolsas de estudos a Programas de Pós-Graduação, fator que determinará a escolha de estudantes sobre onde estudar. Centros de projeção, não necessariamente com maior qualidade nas funções de formação e pesquisa, continuarão sendo os mais atraentes. Com poucas exceções, centros periféricos, além de não possuir incentivos sociais para a permanência de estudantes e pesquisadores na região (economia e infraestrutura local subdesenvolvida), são gravemente desfavorecidos nessa lógica desigual, o que contribui para a concentração geográfica do desenvolvimento em grandes centros urbanos.
É óbvio que minha opinião está pautada pela experiência pessoal. Sou professor concursado de uma Universidade Federal no interior do país. Trabalho arduamente em prol da qualidade das minhas atividades docentes (pesquisa, ensino, extensão e gestão), geralmente para além da carga horária pela qual sou remunerado. Procuro respeitar regras e processos institucionais e sou exigente (às vezes, excessivamente) com a qualidade do meu próprio trabalho e dos estudantes e pesquisadores que trabalham comigo. Em minha formação, tomei decisões pautadas na priorização da qualidade do que estava fazendo, em detrimento de vantagens pessoais ou ascensão profissional. Um exemplo disso é que decidi cursar doutorado sanduíche na África do Sul ao invés de um centro renomado no Norte (EUA ou Europa), pois era o que a minha pesquisa de doutorado exigia – uma adequada pesquisa de campo. Estou longe de ser infalível e tranquilo com esta postura. Erro recorrentemente e sofro muito com várias decisões que poderiam ser mais fáceis e naturais. Como qualquer ser humano me questiono sobre as escolhas profissionais que tomei e tomo diariamente. Mas assumo a responsabilidade e os efeitos colaterais dos meus atos. A questão chave é que este não é um problema de ordem exclusivamente pessoal, haja vista as inúmeras manifestações semelhantes de colegas de instituições centrais e periféricas, no Brasil e exterior. Ou seja, é uma realidade social amplamente estabelecida.
Infelizmente, o horizonte anuncia mais turbulências. A atual proposta de reforma administrativa gestada pelo Governo Federal não resolve o problema. Ao contrário, o agrava. Trata o serviço prestado pelo Estado, entre eles Educação e C&T, exclusivamente como uma matéria de ordem fiscal, como de resto o neoliberalismo faz com toda a política pública. Propõe reduzir, enxugar a máquina pública e arrochar remunerações. O resultado será o oposto da desejada ampliação da qualidade e impessoalidade burocrática. Com menos gente e menos recursos se reproduzirão ainda mais os incentivos e a corrida à garantia de privilégios a amigos e a priorização do status pessoal, ao invés da qualidade do serviço prestado. A quem se sente, como eu, prejudicado com a realidade que descrevi, alerto: aperte o cinto, só tende a piorar.
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