Sustentei na minha dissertação de mestrado, defendida em 2014, que os problemas que surgem no processo penal são reflexos históricos de uma sociedade em transformação. As marcas de desigualdade social, pobreza, miséria, discriminação, exclusão que foram sendo deixadas ao longo da trajetória social brasileira ainda são tarefas importantes para serem debatidas e superadas. Elas também precisam ser reconhecidas no escopo do processo penal, já que o reflexo dessa história repercute na esfera criminal – o que pode ser nitidamente visualizado no atual sistema carcerário brasileiro.
Percebi com a pesquisa que há clara associação entre as características do processo penal no Brasil e a aquisição histórica de direitos da população. Igualmente, as necessidades atuais existentes no processo penal estão vinculadas aos desafios de consolidação do Estado Democrático de Direito, concebido em 1988. Este tipo de Estado é responsável pela garantia integrada de direitos civis, políticos e sociais e reflete no sistema processual penal o compromisso de estabelecimento de um sistema processual penal acusatório, em contraponto a um sistema inquisitorial. Como a concretização do Estado Democrático de Direito no Brasil é ainda uma promessa, o mesmo ocorre com a sua contraparte no sistema processual penal acusatório. Portanto, dificuldades encontradas na transição para a consolidação desse projeto de Estado podem explicar a presença de resquícios inquisitoriais no ordenamento jurídico brasileiro.
O juiz das garantias instituído no Brasil com a Lei 13.964/2019 é um importante marco legislativo, no âmbito dos direitos civis, para contribuir com a superação do inquisitorialismo no processo penal e avançar em busca da consolidação do sistema acusatório. Tal sistema busca, na sua integralidade, um processo humanitário a partir da separação das funções de acusar e julgar, com o juiz distante das partes e das provas, cumprindo o seu papel de terceiro imparcial, assegurando o contraditório pleno e a ampla defesa. Ou alguém gostaria de ser julgado pelo próprio acusador?
No entanto, avanços pontuais que não levem em consideração a complexidade da tarefa assumida pela promessa do Estado Democrático de Direito, e exigida pela sociedade, são insuficientes. Ações meramente legais não são capazes de solucionar as principais necessidades do processo penal de um país em transformação social e política constante. O problema da superação dos resquícios do inquisitorialismo no Brasil vai muito além.
Em primeiro lugar, temos o problema da aplicação da norma. Avanços legais não garantem a aplicação prática da legislação. Aqui entram os desafios e limites da filosofia pessoal dos magistrados. Ou seja, com a alteração legislativa, estarão os juízes das garantias aptos a decidirem de forma fundamentada, que não sejam apenas as suas consciências em busca da dita verdade? Pergunta sem resposta, mas a mudança de mentalidade inquisitorial para acusatória é de difícil superação sem constrangimentos institucionais que os instiguem e garantam a continuidade da transformação de mentalidade.
Em segundo lugar, o juiz das garantias é um importante avanço para o sistema processual penal acusatório, mas não podemos esquecer os desafios em outras esferas de garantia de direitos do Estado Democrático de Direito ainda presentes no processo penal. Trata-se aqui de refletir sobre as demandas de direitos sociais ainda existentes no país. Quer-se, com o juiz das garantias, o respeito à imparcialidade do juízo. Ser julgado por juiz ou tribunal imparcial é, inclusive, reconhecido como direito humano pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. No entanto, as garantias e direito de todos à imparcialidade do juízo, do contraditório, da ampla defesa, da presunção de inocência, da fundamentação das decisões, da igualdade de partes no processo penal, entre outras, somente serão possíveis de serem concretizadas para todos, sem discriminação, se existirem mecanismos amplos de inclusão social que possibilitem o acesso a esse processo por todos os cidadãos.
Tão importante quanto lutar pela instituição de um juiz que atue somente na fase de investigação, é perceber que, sem acesso à justiça e educação em matéria de direitos (inclusive, criminal) para a população como um todo, o sistema acusatório continuará sendo apenas uma promessa. Toda a população brasileira, sem distinção de renda, raça-etnia, gênero e ideologia, deve ter condições de exercer sua cidadania e superar estruturas sociais excludentes, para que exista efetiva defesa técnica e pessoal no processo e haja contraditório pleno. Se não for assim, o juiz das garantias e o Estado Democrático de Direito servirão (ou continuarão servindo) a quem?
Deixe um comentário