Nesses tempos obscuros, parece chover no molhado sair em defesa da Ciência e do pensamento crítico, a razão de ser da Universidade. No entanto, não podemos aceitar que, pela repetição, a excrescência se torne banal e nos vença no cansaço de pensar em criticar o turbilhão de insanidades impensáveis que nos atinge diariamente. Não nos enganemos pelo costume com a nova realidade de ataques rotineiros: Universidade está cada vez mais sitiada, em direção às ruínas.
Orçamento reduzido pela metade, bolsas de estudo cortadas, contratações congeladas, aumento da vigilância injustificada sobre atividades e processos corriqueiros, ameaça de redução de remunerações, perda de benefícios, etc. Essa é a parte concreta de uma perseguição ideológica contra um bode expiatório que existe apenas nos contos de fada. A Universidade está sitiada, alvo de pressões de fora e de dentro de seus muros. Tanto por quem a abomina como reflexo da sua própria ignorância, quanto por quem teme as dificuldades e responsabilidades envolvidas na construção do conhecimento crítico.
Vejo essas duas razões como marcas geracionais. É claro que há inúmeras causas contextuais e individuais que explicam em cada caso as pressões à Universidade nos dias atuais, mas tendo a dar grande valor a mudanças geracionais para explicar fenômenos agregados. Explicações estruturais não descrevem a realidade de todos os casos, mas dão boas noções de como amplos processos se desenvolvem. Talvez por lecionar ano após ano a turmas diferentes de alunos, percebo mudanças comportamentais sutis que passam a predominar em novas gerações em oposição a anteriores. Justamente, com essa observação percebo que talvez tenhamos um choque geracional em grande escala que hoje questiona o sentido que a minha geração atribuiu à Universidade.
Nasci na dita geração Y, os populares Millenials. Nossa característica social mais básica, sobretudo no Brasil, era o acesso a oportunidades inimagináveis a nossos pais. Consumo, conforto, lazer, amparo doméstico tinham apenas uma contrapartida necessária: o estudo. A necessidade de romper com a tradição da maioria das famílias e se formar em uma Universidade era a cobrança básica. Mais do que isso, o curso superior não era só uma expectativa familiar. A maioria de nós via como o caminho natural para a inserção e o sucesso profissional, mesmo se logo ali fôssemos deixar nossa profissão para assumir novos rumos, novas experiências. A Universidade era vista como uma garantia necessária. Uma instituição que respeitávamos não apenas pelas expectativas familiares, mas um estágio de construção de conhecimento, de grupos, de valores, de maturidade, de independência.
A geração Z, que nasceu a partir do final dos anos 1990, pressionou por um dos lados a hegemonia social da instituição Universidade. A Universidade não mais detém o monopólio do acesso ao conhecimento. Apesar de ainda assegurar o diploma formal, muitas vezes informações mais interessantes e atualizadas estão disponíveis fora da sala de aula. A internet garantiu acesso a informação e conhecimento instantâneo. O professor não é mais respeitado pela informação que detém, na realidade sua função na sociedade torna-se questionada. O que faz afinal o professor? Só dá aula? Precisamos dele realmente? O Google+YouTube+Wikipedia não fariam melhor serviço? De fato, fomos pegos desprevenidos por uma galera que procura prazer momentâneo, com baixa capacidade de concentração e muito ciente de seus direitos e interesses pessoais. São incríveis na mobilização pelo que gostam e defendem, mas arredios a cumprirem deveres e funções básicas de estudantes ou trabalhadores empregados. O mais interessante é que além de terem mudado a visão sobre o local da Universidade na obtenção de conhecimento, já questionam também a importância da Universidade no sucesso profissional. Se YouTubers e Digital Influencers ganham rios de dinheiros sem qualquer diploma formal, para que me servirá a Universidade? Nem como garantia básica ela funciona mais. Cursos de graduação são muito extensos e generalistas para o que o mercado pede e a juventude deseja. Aí não assusta a multiplicação de tecnólogos e cursos on-line massivos de qualquer coisa que satisfaça o interesse momentâneo e eventuais booms de mercado. A Universidade tem sentido para quem?
Concomitantemente, a geração que me criou, a X (e fins da Baby Boomer), também se choca com o que produziu em seus filhos. Ao se esforçar dedicando a vida inteira pela estabilidade financeira/familiar, por garantir liberdades e oportunidades que nunca tiveram aos seus próprios filhos, a nova terceira idade começa a questionar se realmente valeu a pena confiar todas as fichas na Universidade. Afinal o que ela produziu? Muitos filhos já são adultos e ainda nem conseguiram independência financeira. Além do mais, se tornaram mais conhecedores que os pais e cheio de arrogância por terem tido acesso a conhecimento crítico e formal. É hora da revolta. Por arrependimento ou frustração, passam a se comportar de forma a questionar a autoridade intelectual dos filhos. Recebem e disseminam fake news sobre qualquer coisa, seguem com idolatria ocultistas digitais de plantão, assumem qualquer conhecimento de forma passiva e acrítica. Buscam recuperar, em atalhos perigosos, o aprofundamento do conhecimento que eles próprios recusaram ao privilegiar o trabalho e a estabilidade familiar. Ademais, por quando muito terem frequentado a Universidade por muito menos tempo que seus filhos, desconhecem o que lá ocorre atualmente e questionam o processo de construção de conhecimentos que só gera incertezas.
Essa realidade é predominante em classes médias de centros urbanos. Destoa da interpretação geracional o caso de uma pequena minoria de famílias urbanas mais intelectualizadas que viram seus membros ascenderem no conhecimento acadêmico para níveis e pós-graduação e pesquisa já nos anos 70, 80 e 90. No outro extremo mais amplo, em muitas regiões do interior ou zonas de pobrezas, o padrão de formação e estruturação da geração Y nem se verificou, apesar de políticas de ações afirmativas recentes terem contribuído para diminuir esse abismo. Não obstante, a distância da realidade universitária auxilia a disseminação do desconhecimento sobre o que lá se faz e a necessidade de sua existência.
Este é o cenário que vislumbro hoje. A Universidade está pressionada por duas gerações que questionam seus valores básicos de produção e disseminação de conhecimento crítico, além da sua função de formar profissionais. As áreas do conhecimento não paradigmáticas, cuja formação situa-se na incerteza e diversidade de ideias e perspectivas teóricas são as que mais sofrem pressões. As Humanidades não produzem respostas rápidas às angústias sociais, questionam certezas rasas e formam trabalhadores qualificados a pensar, a questionar e não a executar aptidões meramente técnicas.
E qual será a saída para a Universidade? Acomodar-se seria, por um lado, aceitar a visão revisionista anti-intelectual dos mais velhos e reacionários e reduzir a universidade a áreas técnicas. Por outro, envolveria encher a sala de aula de atividades que aumentem a satisfação da nova geração, transformando professores em YouTubers cheios de graça e com milhares de likes. É óbvio que a Universidade não sairá a mesma desse cerco, mas precisa necessariamente render-se e destruir seus fundamentos de estimular o conhecimento crítico derivado de muito estudo e debate plural? Não tenho a resposta, apenas um diagnóstico sincero, mas cheio de limites. Carrego também a convicção de que a Universidade ainda tem o seu lugar e que precisa lutar para mostrá-lo a sociedade antes de assumir por completo o veredicto da derrota e da ruína.
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