Muitas coisas podem ser vistas e ditas sobre a África do Sul em duas semanas. Beleza natural, comida diversa e (muito) picante, a gentileza das pessoas e a abundância de animais selvagens são pontos obrigatórios na lista. No entanto, o tema mais polêmico e comumente comentado é certamente a questão racial. Apesar do grande apelo ao tema quando a história da África do Sul é considerada, muitos mitos ainda existem e eu tentarei mostrar alguns deles por aqui. Entretanto, é claro que o problema da raça foi, é e continuará sendo uma grande questão no país. Eu pude pessoalmente vê-lo e senti-lo em três situações.
A primeira foi realmente precoce para nós; na verdade, no próprio avião da South Africa Airways, quando ainda estávamos deixando São Paulo. O avião era um Boing 747 com assentos duplos de cada lado e cinco no meio. No entanto, na parte de trás do avião, devido ao reduzido espaço, os cinco assentos do meio tornam-se três. Esse foi o lugar que aconteceu uma cena difícil de entender. Eu e minha esposa já estávamos sentados e confortavelmente instalados em nossos assentos próximos à janela. Observávamos a grande confusão que estava ocorrendo, devido ao fato de todos estarem carregando malas de “mão” realmente enormes, que claramente deveriam ter sido despachadas. Sobrava para as comissárias e almas gentis a vã tentativa de acomodar os enormes trambolhos nas prateleiras da aeronave. Neste meio tempo uma cena intrigante aconteceu. Um casal branco sul-africano que estava usando dois dos três assentos centrais e conversavam em africâner, a tradicional linguagem branca e do regime do Apartheid, viu um homem negro e grande chegar. Ele era um tipo interessante, com pulseiras valiosas e notório relógio de pulso, vestindo roupas bonitas e um boné. Bem, eles se sentiram muito, muito, mas muito desconfortáveis com a situação quando o grande homem sentou-se ao lado da mulher branca, loira e de belos olhos verdes. O casal viu o homem cumprimentar um casal de negros sentados nos assentos duplos justamente atrás dos nossos e, minutos depois, ainda antes das portas do avião se fecharem, o homem branco se levantou e perguntou para o casal negro se importariam-se de trocar de lugar com ele e sua mulher branca. Como se esperava, o casal negro disse, “é claro que nos importamos. Não deixaremos os nossos lugares.” A situação tornou-se ainda mais constrangedora, pois, após essa decepção, o homem branco quase forçou a aeromoça a realocá-los para outros lugares. Para sua sorte racista (?), ainda havia dois lugares disponíveis na última fileira. Lá foram eles. O grande homem negro ficou sozinho com os três assentos para si, mas o espaço foi muito bem preenchido, com o cheiro do uísque contido em suas veias depois que ele pediu para a comissária cerca de 20 mini garrafas de Johnny Walker. Pelo menos ele não se importou com a situação. Ou será que se importou, e o uísque foi apenas um sinal disso? Bem, nunca saberemos …
A segunda situação foi no Union Buildings, em Pretória. Um monumento para a união dos estados autônomos em um único país, chamado de União Sul-Africana, ocorrida em 1910. O palácio é em si uma obra de arte. Seus jardins frontais são maravilhosamente repletos de flores coloridas nos mais de 10 níveis gramados, acessados por escadas de pedra. É historicamente conhecido por ter sido o local onde uma enorme multidão de sul-africanos ouvia a transmissão do discurso que marcava a posse do primeiro presidente eleito democraticamente na história do país. Acho que você sabe quem ele é… o homem aqui comumente conhecido por Madiba. Este foi o começo do projeto da Nação Arco-íris: um país, muitas cores unidas. Bem, voltando à situação, minha esposa e eu estávamos nos aromáticos jardins, em um agradável pôr do sol. Tirávamos tantas fotos quanto nossa câmera digital poderia permitir um eufórico fotógrafo amador tirar. Em uma das tomadas uma bela menina negra, olhou-nos chocada. Não importava o número de “cuti-cutis” e brincadeiras que fazíamos, ela não se movia. Estava muito bem vestida e parecia ter em torno de 4 anos. Seus pais faziam piquenique a 50 metros de onde estávamos tendo esse diálogo mudo. Não sabemos com certeza, mas vimos em seus olhos um sentimento estranho. Talvez tenha sido a primeira vez que ela estava olhando para pessoas brancas. Obviamente não. Seja o que for, a expressão de tipo “quem-diabos-são-estes-alienígenas” ficou marcada para nós. Minutos mais tarde, após o pôr do sol, quando estávamos nos dirigindo para o nosso Kiazinho Pikantozinho alugado, vimos o primeiro branco pobre dos dois que aqui havíamos encontrado até então. Ele estava implorando por alguns Rands desvalorizados para comprar comida ou álcool. Nós não lhe demos nada, mas talvez este seja o tipo de branco que a menina negra esteja acostumada a ver? É claro que não! Muito pelo contrário, a desigualdade social aqui é ainda brutalmente a favor dos brancos. Mas pelo menos isso é o que alguns deles estão reclamando hoje em dia, a multiplicação de brancos pobres. Falarei disso mais tarde.
A terceira situação ocorreu na véspera do Ano Novo. Chegamos na África do Sul no dia 31 de dezembro e com nenhuma ideia de como e onde as pessoas daqui celebram o réveillon. Felizmente conseguimos encontrar uma grande festa ao lado do nosso hotel no chamado Hatfield Square. Este é um espaço aberto, diariamente lotado de jovens (geralmente de elite e estudantes de uma das universidades antigamente apoiadoras do Apartheid, a Universidade de Pretória) ávidos para gastar o dinheiro dos pais em cerveja, coquetéis de frutas, e tequila. Naquela noite o lugar estava mais agitado do que nunca e quando chegamos um grupo de hip hop de brancos estava tocando em um grande palco canções parcialmente em inglês, parcialmente em Africans. Não conseguimos entender muito do gritedo, digo, das canções, mas no contexto parecia ser uma espécie de protesto de jovens brancos, apesar do fato de que alguns jovens negros estavam cantando intensamente junto. No entanto, pude perceber algum desconforto entre os atendentes do agradável pub em que eu comprava a minha cerveja. Eles eram, claro, negros (os únicos que trabalhavam naquela noite), e não podiam esperar para ligar-seu som mecânico para comemorar no ritmo do aqui amado House Africano. E isso foi o que eles fizeram logo após o show acabar. Agora a festa era deles. Eles celebraram com o som das letras em Zulu e dançaram com garrafas de champanhe nas mãos jogando espuma entre si e naqueles que se incorporavam à festa. Nós agora nos sentíamos na África. Logo começamos a dançar com eles mostrando o nosso “balanço brasileiro”. Tenho certeza que isso era estranho para eles, duas pessoas brancas confortavelmente dançando músicas africanas. Tanto que um negro se aproximou de mim dizendo “Muito bem cara! Feliz ano novo!”. Fiquei muito feliz com isso e, quando ele me deu a mão para cumprimentar, eu tentei o tradicional abraço brasileiro. Mas este era o limite. O cara andou para trás e disse-me: “Não maan! Esta é a maneira que nós fazemos!” e apertou minha mão e bateu com o ombro direito no meu. Talvez era o mais próximo que ele poderia chegar de um homem branco. Talvez fosse apenas o meu preconceito sobre as coisas. Quem vai saber?
A coisa boa é que no dia seguinte nós fomos para um shopping center gigantesco em Pretória chamado Menlyn Mall e felizmente vimos uma imagem de esperança. Um casal misto! Sim, um jovem branco, segurando a mão de uma mulher negra de mesma idade. O único sinal em duas semanas de que as cores Nação Arco-íris estão começando a se misturar.
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